“Você só pode aprender algo sobre o duplo praticando. E estou falando com você porque sua fase de transição ainda não terminou. Emilito pegou-me pelo braço e, sem dizer mais nada, praticamente arrastou-me até os fundos da casa, onde posicionou-me debaixo de uma árvore com o topo da cabeça a poucos centímetros de um galho baixo e grosso. Explicou que ia ver se eu conseguia projetar meu duplo novamente, desta vez plenamente consciente, com o auxílio da árvore.
Tive sérias dúvidas se eu seria capaz de projetar alguma coisa, e disse isso a ele. Mas Emilito insistiu que, se eu tivesse a intenção, meu duplo faria pressão de meu interior e se expandiria além dos limites de meu corpo físico.
— O que devo fazer exatamente? — perguntei, na esperança de que me mostrasse um procedimento que fosse parte da lei dos feiticeiros.
Emilito pediu-me para fechar os olhos e concentrar-me na minha respiração. À medida que fosse relaxando, eu devia ter a intenção de fluir ascendentemente, até conseguir tocar os galhos mais altos, com um sentimento proveniente do portal no topo da minha cabeça. Explicou que isto seria relativamente fácil para mim, pois eu estaria utilizando o apoio de minha amiga árvore. Prosseguiu dizendo que a energia da árvore formaria uma matriz para a expansão de minha consciência.
Após algum tempo concentrando-me na minha respiração, senti uma energia vibrando e ascendendo pela coluna vertebral, tentando abrir o topo da minha cabeça. Então algo aconteceu dentro de mim. A cada inspiração, uma linha se alongava até o topo da árvore; quando eu expirava, a linha era novamente puxada para meu corpo. A sensação de alcançar o topo da árvore tornou-se mais intensa a cada respiração, até que realmente acreditei que meu corpo estava se expandindo, tornando-se tão alto e volumoso quanto a árvore.
Em determinado momento, profunda afeição e compaixão pela árvore envolveram-me; nesse exato instante, algo ascendeu em movimento ondulante pelas minhas costas e atravessou o topo da minha cabeça, e eu me percebi contemplando o mundo dos galhos mais altos. Esta sensação perdurou apenas um instante, interrompida pela voz do caseiro, mandando-me descer e fluir novamente para dentro de meu corpo. Senti algo semelhante a uma cascata, uma efervescência fluindo para baixo, entrando pelo topo da minha cabeça e inundando meu corpo com um calor familiar.
— Você não deve permanecer misturada com a árvore por tempo demais — disse-me ele quando abri os olhos.
Senti uma vontade fortíssima de abraçar a árvore, mas o caseiro puxou-me pelo braço até uma grande rocha a alguma distância, onde nos sentamos. Explicou que, com o auxílio de uma força externa, neste caso unindo minha consciência à da árvore, é possível promover facilmente a expansão do duplo. Contudo, por ser fácil, corremos o risco de permanecer unidos à árvore por tempo demais e, nesse caso, podemos extrair a energia vital de que a árvore necessita para manter-se forte e saudável. Ou podemos deixar parte de nossa energia para trás, tornando-nos emocionalmente apegados à árvore.
—Uma pessoa pode fundir-se com qualquer coisa—explicou ele. — Se aquilo ou aquele que com que você se fundir estiver forte, sua energia será ampliada, como acontecia sempre que você se fundia ao mago, Manfred. Contudo se estiver doente ou fraco,permaneça longe. Em ambos os casos, você deve fazer o exercício com moderação pois, assim como tudo na vida, ele é uma faca de dois gumes. A energia exterior é sempre diferente da nossa, freqüentemente oposta.
Ouvi com atenção o que o caseiro dizia. Algo me chamou a atenção.
— Diga-me, Emilito, por que você chamou Manfred de mago?
— Essa é nossa maneira de reconhecer nossa singularidade. Manfred, para nós, só pode ser um mago. Ele é mais do que um feiticeiro. Ele seria um feiticeiro se tivesse vivido entre seu grupo. Ele vive entre seres humanos, feiticeiros humanos ainda por cima, em igualdade de condições. Somente um mago consumado poderia realizar tal façanha.
Perguntei-lhe se voltaria a ver Manfred; o caseiro cruzou os dedos indicadores sobre os lábios de maneira tão exagerada que fiquei em silêncio e não o pressionei mais por uma resposta.
Emilito pegou um galho e desenhou uma forma ovalada no solo macio. Em seguida, acrescentou uma linha horizontal que a atravessava ao meio. Apontando os dois lados, ele explicou que o duplo divide-se em uma parte inferior e outra superior que correspondem, aproximadamente, no corpo físico, ao abdômen e ao tórax. Duas correntes energéticas diferentes circulam nessas regiões. Na área inferior, circula a energia original que possuíamos quando ainda nos encontrávamos no útero. Na área superior, circula a energia do pensamento. Esta energia adentra o corpo por ocasião do nascimento, ao primeiro alento. Emilito explicou que a energia do pensamento é ampliada através da experiência e ascende até a cabeça A energia original mergulha na região genital. Em geral, ao longo da vida essas duas energias se separam no duplo, provocando fraqueza e desequilíbrio no corpo físico.
Ele traçou outra linha, desta vez a partir do centro da elipse, dividindo-a longitudinalmente em duas partes, o que corresponde, afirmou ele, aos lados direito e esquerdo do corpo. Esses dois lados também possuem dois padrões específicos de circulação energética. No lado direito, a energia sobe pela região dianteira do duplo e desce pela região posterior. No lado esquerdo, a energia desce pela região dianteira do duplo e sobe pela região posterior.
Explicou que muitas pessoas, quando tentam ver o duplo, cometem o erro de aplicar ao duplo as leis do corpo físico, exercitando-o, por exemplo, como se fosse feito de músculos e ossos. Emilito assegurou-me de que não é possível condicionar o duplo através de exercícios físicos.
— A maneira mais fácil de solucionar esse problema é separar os dois — explicou o caseiro. — Somente quando estão incontestavelmente separados, a consciência pode fluir de um para o outro. É isso que os feiticeiros fazem. Assim, podemos dispensar a tolice de rituais, sortilégios e técnicas respiratórias elaboradas que supostamente os unificam.
— Mas e as respirações e passes de feitiçaria que Clara me ensinou?
Também são uma tolice?
— Não. Ela lhe ensinou apenas coisas que poderiam ajudá-la a separar seu corpo e seu duplo. Portanto, todas são úteis para nossa meta.
Explicou ainda que possivelmente nosso maior engano, enquanto homens, é acreditar que nossa saúde e bem-estar se encontram na esfera do corpo, quando na verdade o controle de nossas vidas se encontra na esfera do duplo. Esta falácia provém do fato de que o corpo controla nossa consciência. Emilito acrescentou que, em geral, nossa consciência é colocada na energia que circula no lado direito do duplo, o que resulta em nossa capacidade de pensar e raciocinar e lidar eficientemente com idéias e pessoas. Às vezes, acidentalmente, embora com mais freqüência, como resultado da prática, a consciência pode transferir-se para a energia que circula no lado esquerdo do duplo, resultando em um tipo de pensamento que não é tão direcionado para as realizações intelectuais ou para o trato com as pessoas.
— Quando a consciência é levada constantemente para o lado esquerdo do duplo, este é despertado e emerge — prosseguiu o caseiro — e o indivíduo torna-se capaz de realizar feitos inconcebíveis. Isto não deve surpreender, pois o duplo é nossa fonte de energia. O corpo físico é simplesmente o recipiente onde a energia é depositada.
Perguntei-lhe se algumas pessoas podem concentrar sua consciência em ambos os lados do duplo, de acordo com sua vontade. Ele assentiu
— Os feiticeiros podem fazer isso. No dia em que conseguir fazer isso, você será uma feiticeira.
Afirmou que algumas pessoas podem transferir sua consciência para o lado direito ou esquerdo do duplo, após concluírem com sucesso o vôo abstrato, simplesmente manipulando o fluxo de sua respiração. Estas pessoas podem praticar feitiçaria ou artes marciais assim como são capazes de manipular intrincados constructos acadêmicos. Ressaltou que o impulso de transferir a consciência regularmente para a esquerda constitui uma armadilha infinitamente mais fatal do que os atrativos da vida cotidiana, devido ao mistério e poder a ele inerentes.
— A verdadeira esperança para nós está no centro—explicou ele, tocando minha testa e o centro de meu peito —, pois no muro que divide os dois lados do duplo existe uma porta secreta, que se abre para um terceiro compartimento, estreito e secreto. Apenas quando esta porta se abre é que se torna possível experimentar a verdadeira liberdade. Emilito segurou meu braço e retirou-me da pedra.”
(A Travessia das Feiticeiras, Taisha Abelar)