“- O que há comigo, dom Juan?- perguntei.
Para me acalmar, comecei a falar do meu dilema. Eu achava que já era tarde demais para fingir ser apenas um espectador inocente. Sob orientação dele, eu me treinara para conseguir algumas percepções estranhas, tais como parar-o-diálogo-interno e controlar meus sonhos. Esses eram caso que não podiam ser forjados. Eu seguira as sugestões dele, embora nunca ao pé da letra, e em parte conseguira romper as rotinas diárias, assumir a responsabilidade pelos meus atos, apagar a história pessoal e chegara a por fim a um ponto que eu temera, anos antes: era capaz de ficar sozinho sem perturbar o meu bem-estar físico ou emocional. Talvez fosse esse meu maior triunfo isolado, Do ponto de vista de minhas antigas expectativas e estados de espírito, ficar-sozinho sem ficar ´maluco´ era um estado inconcebível. Eu tinha consciência nítida que se haviam processado em minha vida e meu conceito de mundo, e sabia ainda que era um tanto supérfluo ficar tão afetado pela revelação do duplo feita por dom Juan e dom Genaro.
– Você se entrega – retrucou ele, secamente. – Acha que entregar-se a dúvidas e aflições é indício de um homem sensível. Então, pra que fingir? Já lhe disse, outro dia, um guerreiro aceita com humildade aquilo que ele é.
– Você faz parecer que estou me confundindo de propósito.
– Nós nos confundimos de propósito, sim. Nós todos temos conhecimento de nossos atos. Nossa razão insignificante de forma intencional se transforma no monstro que se imagina; Mas a razão é muito pequena para um molde tão grande.
Expliquei-lhe que meu dilema era, talvez, mais complexo do que ele estava fazendo parecer. Disse que, embora ele e dom Genaro fossem homens como eu, o controle superior deles os tornava modelos para meu comportamento. Mas, se eles fossem em essência homens dramaticamente diferentes de mim, então eu não poderia mais concebê-los como modelos, e sim como excentricidades, a cuja imitação eu não poderia aspirar.
– Genaro é um homem – disse dom Juan, num tom tranquilizador. – Não é um homem como você, é bem verdade.
Mas isso é um feito dele, e não devida dar margens a receios, de sua parte. Se ele é diferente, razão maior para admirá-lo.
– Mas a diferença dele não é uma diferença humana – disse eu.
– E o que você acha que seja? A diferença entre um homem e um cavalo?
– Não sei. Mas ele não é mesmo como eu.
– Mas ele já o foi.
– Mas a transformação nele pode ser compreendida por mim?
– Você mesmo já está se transformando.
– Quer dizer que vou criar um duplo?
– Ninguém cria um duplo. Isso é apenas uma maneira de referir-se ao assunto. Você, apesar de falar tanto, é um pateta com relação às palavras. Fica preso no significado delas. Agora, está pensando que se cria um duplo por meios maléficos, suponho. todos nós, seres luminosos, somos um duplo. Todos nós! Um guerreiro aprende a ter noção disso, mais nada. Existem barreiras aparentemente intransponíveis protegendo essa noção. Mas isso é de esperar; são barreiras que tornam a conquista dessa noção um desafio tão raro. Pense assim- continuou ele – O mundo não cede a nós diretamente, a descrição do mundo se impõe. Assim, a bem dizer, estamos sempre um passo atrás do presente e nossa experiência do mundo é sempre uma recordação da experiência. Se a nossa experiência do mundo e de nós é uma recordação, então não é assim tão absurdo concluir que um homem de conhecimento possa estar em dois lugares ao mesmo tempo. Solidez, corporalidade são recordações. Portanto, tudo o que sentimos a respeito do mundo, são recordações em essência. Recordações da descrição.
Quando dom Juan parou de falar, eu tinha certeza de estar com febre.
– Por que tenho tanto medo disso, dom Juan?
– Porque você está pensando que o duplo é o que a palavra está dizendo, um duplo, ou um outro você. Escolhi esta palavra apenas para descrevê-lo. O duplo é o próprio ser e não pode ser encarado de outro modo. O duplo não é uma escolha pessoal. Simplesmente surge no processo do envolvimento com o Conhecimento. Um guerreiro está nas mãos do poder que escolheu por sua vida impecável na busca da liberdade. Não há meio de forjar triunfo ou derrota. Sua razão pode querer que você fracasse, a fim de apagar a totalidade de seu ser. Mas existe uma contrapartida que não permitirá que você declare uma falsa vitória ou derrota. Se acha que pode fugir para o abrigo do fracasso, está se enganando redondamente. As forças que já despertou montará guarda e não o deixará seguir tais atalhos falsificados. “
(Porta para o Infinito, Carlos Castañeda)