“(Armando Torres:) Quando eu expressei aos meus companheiros que eu havia decidido relatar em um novo livro parte das experiências que vivi, o Atocayo me alertou sobre o perigo da fama e da fortuna. Ele disse que o importante era cuidar que minha intenção de ajudar os outros não se tornasse o objetivo final do meu caminho.
– Muitos traem o intento da liberdade, seja pela ambição do dinheiro, ou pelo desejo de ser famosos, amados e admirados pelos outros.
“O verdadeiro guerreiro tem uma insaciável sede de liberdade e infinita curiosidade sobre tudo; portanto, está sempre em um processo de experimentação e aprendizagem. Isso o mantém andando em linha reta, o faz humilde diante dessa grandiosidade na qual estamos imersos.
“Mesmo quando compartilha suas realizações com os outros, o guerreiro não se enreda nos emaranhados da importância pessoal, simplesmente porque não tem tempo a perder. Ele sabe muito bem que a morte vem pisando nos seus calcanhares, então ele sente a urgência de continuar experimentando, desfrutando do mundo “.
Ele também me disse que, se eu pensava enfrentar esse desafio, eu teria que ser extremamente desapegado. Além disso, ele me exortou a nunca revelar minha identidade em meus escritos.
– A abertura para as pessoas tem um preço muito alto – disse ele, e pegou como exemplo o próprio Carlos. – Embora tenha sido um formidável guerreiro, ele pagou com a própria vida e talvez até com a sua liberdade, por ter se tornado acessível.
Seu comentário se deve ao fato de que, segundo alguns videntes que estiveram em contato com ele no outro mundo, Carlos adotou “o plano de emergência”. Uma vez que a deterioração de seu corpo físico havia começado, ele se juntou aos outros videntes de sua linhagem no “cemitério dos naguais”.
Carlos havia tocado no tema do cemitério dos naguais muito brevemente, sem que jamais deixasse totalmente claro o significado daquele conceito tão elusivo; Fiquei por muito tempo à espera de uma oportunidade para perguntar a ele sobre isso.
Naquela tarde, depois que ele concluiu seus compromissos, nos encontramos em um restaurante que tinha algumas mesinhas na calçada. Quando terminamos de comer, fomos até um parque próximo. Enquanto nos aproximávamos, por um momento, fiquei fascinado ao observar a água que caia de uma fonte e formava uma cúpula (domo) transparente. Fiz um esforço consciente e consegui quebrar a atração que a água exercia sobre mim.
Nós nos sentamos em um banco próximo e me apressei para lhe perguntar:
– Carlos, qual é o verdadeiro objetivo dos feiticeiros?
Quando ele começou a falar, percebi que havia esquecido meu caderno de anotações no restaurante, mas não disse nada a ele para não atrapalhar o fluxo de idéias que ele me apresentou. Durante a explicação, ele comentou que Don Juan havia lhe deixado uma tarefa, sobre a qual ele não quis me dar mais detalhes naquele momento. No final, ele disse que seu professor havia prometido a ele que, se ele não cumprisse essa tarefa, ele tentaria vir buscá-lo onde quer que estivesse.
Eu devo ter aparentado uma expressão de angústia em meu rosto porque ele, como que lendo meus pensamentos, me perguntou:
– Onde estão suas anotações?
Confessei tê-las deixado no restaurante e pedi permissão para ir atrás delas. Dei uma corrida rápida e as recuperei sem problemas. Ao retornar, tentei retomar o fio da meada da conversa, perguntando-lhe:
– E onde você acredita que Don Juan está agora?
– Tenho certeza de que ele e seus guerreiros foram se juntar aos outros videntes de sua linhagem na cúpula dos naguais.
Diante do meu olhar inquisitivo, ele acrescentou:
– No nosso último encontro, vi como todos eles se dissolveram em pleno ar. Dom Juan escolheu o topo de uma montanha para embarcar em sua jornada final; Naquele lugar, os outros aprendizes e eu nos despedimos dele.
“Depois de sua partida, fiquei à deriva por anos, sem saber se estava indo ou vindo. Finalmente, comecei a lembrar de tudo o que havia acontecido. Demorei muitos anos só para poder entender aquilo do que estava me lembrando. Ainda hoje, novas memórias do nosso tempo sob a tutela do nagual Juan Matus continuam a emergir.
“Houve uma época em que eu estava mais do que confuso. Você pode imaginar o que significa ter duas memórias diferentes do mesmo evento? Eu estava prestes a perder minha sanidade quando, finalmente, as respostas chegaram. Depois de anos de luta, consegui estabelecer alguma ordem no caos das minhas memórias.
“Se você olhar com cuidado, você verá que em meus livros relatei alguns eventos que aconteceram comigo desde diferentes níveis de consciência. Isso porque, em cada nível, eu vi e interpretei o que aconteceu comigo de uma maneira diferente. Este é o mistério da consciência acrescentada: nesses momentos se vive com tamanha intensidade, que levam-se anos para realinhar a memória. “
Ele tomou um momento de silêncio para refletir, ou talvez para lembrar, e depois continuou:
– Em certa ocasião, don Juan levou-me a um lugar isolado nas montanhas e lá ele me deu de fumar em seu cachimbo. Enquanto eu estava sob o poder do fumo, ele me mostrou uma colônia de insetos vermelhos.
Na sequência, tive visões extravagantes que, naquela época, não faziam sentido nenhum para mim; senti como se estivesse voando em direção a uma gigantesca cúpula branca.
“Mais tarde, Don Juan me explicou o significado de tudo isso. Ele disse que os videntes da antiguidade criaram um refúgio no mundo dos sonhos, baseado na estrutura organizacional desses insetos. Ele me revelou que, ao abandonar este mundo, ele e seu grupo planejaram ir para lá “.
Fiquei chocado ao ouvir Carlos dizer isso. Até então, acreditava que seu professor e os outros de seu grupo tinham ido para a terceira atenção. Naquele momento, eu tinha mil perguntas a fazer, mas não sabia por onde começar. Fiquei absorto por um momento, avaliando as implicações do que ele me revelara.
Deve ter notado minha surpresa, porque abriu a boca exageradamente, parodiando minha expressão e comentou:
– Eu também boquiaberto quando ouvi isso.
Dom Juan dizia que os antigos haviam descoberto a formação existencial criada por aqueles insetos de uma maneira completamente acidental, durante um de seus experimentos de contemplação. Ao observá-los mais a fundo, chegaram a se interessar tanto que acabaram movendo seus pontos de encaixe para a posição dessas criaturinhas, transformando-se fisicamente em um delas. Eles descobriram que a organização social criada por esses seres era a própria perfeição. Como resultado, fizeram uma réplica daquela estrutura em algum lugar do outro mundo “.
Eu estava interessado em saber como e quando os antigos criaram esse lugar.
Os feiticeiros da antiguidade contavam que, em tempos remotos, até mesmo para eles, havia um casal de naguais muito poderosos; dizem que eles foram os fundadores. Esses brujos eram tais mestres do ensonho, que conseguiram ensinar essa arte a todo o povo.
“Contam que, eventualmente, essas pessoas se tornaram tão eficazes em ensonhar que, para elas, não havia mais qualquer diferença entre estar acordadas ou sonhando, atuavam com igual controle em ambos os reinos.
“Sob a supervisão do casal nagual, estes ensonhadores foram capazes de recriar as suas cidades dentro de suas visões de ensonho coletivo e, assim que chegou o momento, optaram por ir viver no mundo de sua criação. Um dia, simplesmente, desapareceram da face da terra “.
Depois de dizer isso, ele me encarou, como se estivesse avaliando minha reação. Fiquei fascinado com o que ele me contava, tudo que queria era que ele seguisse falando. Depois de um momento, ele continuou:
– Com o passar do tempo, para muitos brujos, chegar a esse lugar se tornou um objetivo prioritário. Linhagens inteiras se reuniram ali, de modo que o lugar passou a ser conhecido como “o refúgio” ou “o santuário”. Ao aumentar o número de residentes, essa comunidade tornou-se uma enorme bolha de ensonho coletivo que é mantido até os dias de hoje pelo intento de um monte de brujos, que fixam em conjunto o ponto de encaixe nessa posição específica.
– Onde fica esse lugar?
“Estão assentados em algum lugar ali fora, naquela imensidão – disse, e gesticulou com o braço, indicando o espaço infinito -. Os ensonhadores que viajam para aquele lugar, percebem-no como uma enorme cúpula branca.
– Mas, eles existem em outro planeta?
Ele sorriu antes de me responder.
– Como eu disse, eles existem em outra posição do ponto de aglutinação. Com o tempo, eles transformaram esse lugar em uma base fantástica para armazenar seus recursos. Com a vantagem que a existência inorgânica lhes dá, eles se aventuram desde lá por todo o Cosmos; dessa forma, exploram as possibilidades perceptivas mais incríveis.
“Isso é possível porque, nas condições em que estão, o tempo passa de outra maneira e as leis do espaço-tempo que conhecemos não se aplicam. Eles conseguiram escapar efetivamente do desgaste da existência biológica e seguem a vivos até o dia de hoje, pois conseguiram se vincular diretamente à consciência da terra, e assim, podem continuar existindo durante quase uma eternidade, enquanto perdure o nosso planeta.
– E por que eles fizeram isso?
– Seu objetivo era sobreviver a todo custo e, para superar a morte, escolheram se tornar um tipo especial de seres inorgânicos. No entanto, sabendo da condição predatória que reina lá fora, confabularam para criar um refúgio no outro mundo.
Olhando-me diretamente nos olhos, ele acrescentou:
– Você já sabe que o Universo lá fora é predador. Quando você passa para o outro lado, você permanece sujeito às leis e aos grupos de inorgânicos que governam lá. Em várias ocasiões, se desencadearam entre eles verdadeiras batalhas pela consciência de seus habitantes.
“Ao criar” a colméia “, eles conseguiram manter um alto grau de independência. E, mesmo que isso não os liberte completamente da influência do reino inorgânico, pelo menos eles não são escravos.”
(O Segredo da Serpente Emplumada, Armando Torres)