Durante anos, a necessidade de entender o mundo tinha me levado a armazenar grande quantidade de explicações científicas ou religiosas sobre quase tudo, cujo denominador comum era uma grande confiança na continuidade do homem. Ao me ajudar a focalizar o universo com os olhos de bruxo, Carlos destruiu em mim essa sensação. Ele me fez ver que a morte é uma realidade inapelável e que ignorá-la com crenças de segunda mão é vergonhoso. Em um certo momento, alguém lhe perguntou: “Carlos, que expectativas você tem para o futuro?”. Saltou: “Não há expectativas! Os bruxos não têm amanhã!”. Nessa noite havíamos reunido, no auditório de uma residência privada, pela região de San Jerônimo, um grupo bastante grande de interessados. Quando eu cheguei, Carlos já tinha feito seu ato de presença e se dedicava, muito sorridente, a responder algumas perguntas. O tópico inicial foi o que definiu como “não fazer”, uma atividade especialmente projetada para banir de nossas vidas todo o vestígio de cotidianidade. Afirmou que o não fazer é o exercício favorito dos aprendizes, porque os introduzem em um ambiente de maravilha e desconcerto muito refrescante para a energia, cujo efeito sobre a consciência eles chamam de “parar o mundo”. Respondendo a algumas questões, explicou que o não fazer não pode ser racionalizado. Qualquer esforço para tentar entendê-lo, é na realidade uma interpretação do ensino e cai automaticamente no campo de fazer. “A premissa dos bruxos para tratar com este tipo de prática é o silêncio mental. E a qualidade de silêncio requerido para algo tão descomunal quanto parar o mundo, só pode vir de um contato direto com a grande verdade de nossa existência: que todos nós vamos morrer”. Ele nos aconselhou: “Se vocês querem conhecer a si mesmos, sejam conscientes de sua morte pessoal. Ela não é negociável e é a única coisa que vocês realmente têm. Todo o resto poderá falhar, mas a morte não, a ela podem dar por certo. Aprendam a usá-la para produzir efeitos verdadeiros em suas vidas.

“Também, parem de acreditar em contos da carochinha, ninguém os quer lá fora. Nenhum de nós é tão importante para que hajam inventado algo tão fantástico como a imortalidade. Um bruxo que tem humildade sabe que o destino dele é o de qualquer outro ser vivo desta terra. Assim, em vez de se iludir com falsas esperanças, ele trabalha concreta e duramente para sair de sua condição humana e tomar a única saída que nós temos: a quebra de nossa barreira perceptual”. “Ao mesmo tempo em que escutam o conselho da morte, façam-se responsáveis por suas vidas, da totalidade das suas ações. Explorem-se, reconheçam-se e vivam intensamente, como vivem os bruxos. A intensidade é a única coisa que pode nos salvar do aborrecimento”. “Uma vez alinhados com a morte, estarão em condições de dar o seguinte passo: reduzir ao mínimo a bagagem. Este é um mundo prisão e é necessário sair como fugitivos, sem levar nada”. “Os seres humanos são viajantes por natureza. Voar e conhecer outros horizontes é nosso destino. Por acaso você sai de viagem com sua cama ou com a mesa em que come? Sintetiza sua vida!”. Comentou que a humanidade de nosso tempo adquiriu um hábito estranho que é sintomático do estado mental em que vive. Quando viajamos, compramos todo o tipo de artefatos inúteis em outros países, coisas que, certamente, não adquiriríamos em nossa própria terra. Uma vez que voltamos para casa, os amontoamos em um canto e terminamos esquecendo da sua existência até que um dia os descobrimos, por casualidade, e os atiramos ao lixo. “Assim acontece com nossa viagem pela vida. Nós somos como asnos carregando um fardo de porcarias. Não há nada valioso ali. Tudo o que fizemos só serve para que, no fim, quando a velhice nos assalta, repitamos alguma frase, como um disco riscado”. “Um bruxo se pergunta: que sentido tem tudo isso? Porque investir meus recursos no que não me ajuda em nada? O compromisso de um bruxo é com o desconhecido, não pode comprometer sua energia em nulidades. Em sua passagem pela terra, tire algo verdadeiramente valioso, caso contrário, não valeu a pena”. “O poder que nos rege nos deu escolhas. Ou nós passamos a vida dando voltas ao redor de nossos hábitos, ou nos animamos a conhecer outros mundos. Só a consciência da morte pode nos dar a sacudidela necessária”. “A pessoa comum passa a existência inteira sem parar para meditar, porque ela pensa que a morte está ao término da vida; afinal de contas, nós sempre teremos tempo para ela! Mas um guerreiro sabe que isso não é certo. A morte vive a seu lado, a um braço de distância, permanentemente alerta, olhando-nos disposta a saltar à menor provocação. O guerreiro transforma seu medo animal à extinção em uma oportunidade de prazer, porque ele sabe que tudo aquilo que ele tem é este momento. Pensem como guerreiros, todos vamos morrer!” Um dos presentes lhe perguntou: “Carlos, em uma conferência passada você nos falou que possuir o ânimo de um guerreiro consiste em ver a morte como um privilégio. O que significa isso?”

Respondeu: “Significa sair de nossos hábitos mentais”. “Estamos tão acostumados à coexistência que, até mesmo diante da morte nós continuamos pensando em termos de grupo. As religiões não falam do indivíduo em contato com o absoluto, mas de rebanhos de ovelhas e de cabras que vão para o céu ou para o inferno, de acordo com seu merecimento. Até mesmo se nós somos ateus e não acreditamos que aconteça nada depois da morte, esse ‘nada’ é genérico, é o mesmo para todos. Nós não podemos conceber que o poder de uma vida impecável possa mudar as coisas”. “Com tal ignorância, é normal que o homem comum tenha pânico de seu fim e tente conjurá-lo com orações e medicamentos ou se atordoando com o ruído do mundo”. “Os humanos têm uma visão egocêntrica e extremamente simplista do universo. Jamais paramos para considerar nosso destino como seres transitórios. Porém, a obsessão pelo futuro nos delata”. “Não importa a sinceridade ou o cinismo de nossas convicções, no fundo, todos sabemos o que acontecerá. Por isso, todos deixamos sinais. Nós construímos pirâmides, arranha-céus, fazemos filhos, escrevemos livros ou, no mínimo, desenhamos nossas iniciais no tronco de uma árvore. Atrás desse impulso subconsciente está o medo ancestral, a convicção calada da morte”. “Mas existe um grupo humano que pôde enfrentar esse medo. Ao contrário do homem comum, os bruxos estão ávidos de qualquer situação que os leve além da interpretação social. Que melhor oportunidade que a própria extinção? Graças às suas freqüentes incursões pelo desconhecido, eles sabem que a morte não é natural, é mágica. As coisas naturais estão sujeitas a leis, a morte não. Morrer é sempre um evento pessoal, e por essa única causa, é um ato de poder”. “A morte é o pórtico do infinito. Uma porta feita sob medida a cada um de nós que a cruzaremos um dia para voltarmos à nossa origem. Nossa falta de compreensão nos impele a vêla como o redutor comum. Mas não, não há nada de comum nela; tudo ao seu alcance se torna extraordinário. Sua presença dá poder à vida, concentra os sentidos”. “Nossas existências estão repletas de hábitos. Ao nascermos, já estamos programados como espécie e nossos pais se encarregam de estreitar ainda mais esse programa ao nos conduzir àquilo que a sociedade espera de nós. Mas ninguém pode morrer como rotina, porque a morte é mágica. Ela faz você saber que é sua inseparável conselheira e lhe diz: ‘seja impecável; a única opção é ser impecável'”. Uma mocinha que participava da reunião, visivelmente emocionada pelas palavras dele, comentou que a presença obsessiva da morte em suas lições era um detalhe que contribuía para obscurecê-las. Ela teria gostado de uma posição mais otimista, mais focalizada na vida e suas realizações. Carlos sorriu e replicou:

“Ah coração de melão!, em suas palavras se nota uma profunda falta de experiência com a vida. Os bruxos não são negativos, eles não procuram o fim. Mas eles sabem que o que lhes dá valor à vida é ter um objetivo pelo qual morrer”. “O futuro é imprevisível e inevitável. Algum dia você já não estará aqui, assim já se foi. Você sabe que a árvore de seu caixão provavelmente já foi cortada?”. “Tanto para o guerreiro como para o homem comum a urgência de viver é a mesma, porque nenhum dos dois sabe quando seus passos terminarão. Por isso é necessário estar atento ante à morte; pode nos surpreender de qualquer canto. Eu soube de um tipo que subiu numa ponte e urinou sobre um trem elétrico que ia passando. A urina tocou os cabos de alta tensão, lhe deu uma descarga e o queimou ali mesmo. “A morte não é brincadeira não, é de verdade! Se não fosse por ela não haveria força alguma no que os bruxos fazem. Ela o envolve pessoalmente, queira ou não. Você pode ser tão cínico a ponto de descartar outros tópicos dos ensinamentos, mas você não pode debochar de seu fim, porque está além de sua decisão e é implacável”. “A carroça do destino nos levará a todos igualmente. Mas há dois tipos de viajantes: os guerreiros que podem partir com sua totalidade, porque eles afinaram cada detalhe de suas vidas; e as pessoas comuns, com existências enfadonhas, sem criatividade, cuja única espera é a repetição de seus estereótipos de agora até o final; pessoas cujo fim não encontrará diferença alguma, aconteça hoje ou em trinta anos. Todos estamos ali, esperando na plataforma da eternidade, mas nem todos sabem disso. A consciência da morte é uma arte maior”. “Quando um guerreiro põe em cheque suas rotinas, quando já não lhe importa estar acompanhado ou estar só, porque tem escutado o sussurro silencioso do espírito, então a pessoa pode dizer que, verdadeiramente, está morto. A partir dali, as coisas mais simples da vida se tornam para ele extraordinárias”. “Por isso um bruxo aprende uma nova maneira de viver. Saboreia cada momento como se fosse o último. Não se consome em desgostos nem joga fora sua energia. Não espera ficar velho para meditar sobre os mistérios do mundo. Se adianta, explora, conhece e se maravilha”. “Se vocês querem dar espaço ao desconhecido, dêem entrada à sua extinção pessoal. Aceitem seu destino como o fato inevitável que é. Purifiquem esse sentimento, fazendo-se responsáveis pelo incrível evento de estarem vivos. Não implorem à morte; ela não é condescendente com os que hesitam. Invoquem-na conscientes de que vieram à este mundo para conhecê-la. Desafiem-na, ainda sabendo que, façamos o que façamos, não temos a menor possibilidade de vencê-la. Ela é tão gentil com o guerreiro como é impiedosa com o homem comum”. Depois desta conferência, Carlos nos deu um exercício.

“É inventariar seus entes queridos e todo mundo que lhes interesse. Uma vez que os classifiquem, de acordo com o grau de sentimentos que vocês têm por eles, vão pegar um por um e passá-los pela morte”. Eu pude notar um murmúrio de consternação que sacudiu seus ouvintes. Fazendo um gesto tranqüilizador, Carlos acrescentou: “Não se assustem! A morte não tem nada de macabro. O macabro é que não possamos enfrentá-la com deliberação”. “Vocês devem levar a cabo o exercício à meia noite, quando a fixação de nosso ponto de aglutinação se move e estamos dispostos a acreditar em fantasmas. É muito fácil, vocês evocarão os seus entes queridos através de seu fim inevitável. Não pensem em como ou quando eles morrerão. Simplesmente, tomem consciência de que algum dia eles já não estarão aqui. Um por um eles partirão, só Deus sabe em que ordem, e não importará o que você possa fazer para evitálo”. “Ao evocá-los assim, vocês não os prejudicarão, pelo contrário!, estarão os colocando na perspectiva apropriada. O ponto de enfoque da morte é prodigioso, restabelece os verdadeiros valores da vida”.

(Encontros com o Nagual, Armando Torres)
(Compartilhado por João Almeida)

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