“Começamos a nossa caminhada de manhã e paramos para descansar por volta do meio-dia. Eu estava transpirando e quis beber de meu cantil, mas ele não deixou, dizendo que era melhor só beber um gole d’água. Cortou umas folhas de um arbusto amarelado e mascou-as. Deu-me algumas, dizendo que eram excelentes e que, se eu as mastigasse devagar, minha sede desapareceria. Não desapareceu, mas não me senti mal, tampouco.
Pareceu ler meus pensamentos e explicou que eu não tinha sentido os efeitos benéficos da ‘maneira certa de caminhar’ nem de mascar as folias porque era jovem e forte e meu corpo não notava nada porque era um pouco burro.
Ele riu. Eu não estava disposto a rir e isso pareceu diverti-lo mais ainda. Corrigiu sua declaração anterior, dizendo que meu corpo não era propriamente burro, mas apenas adormecido.
Naquele momento, um corvo enorme voou bem por cima de nós, grasnando. Aquilo me assustou e comecei a rir. Achei que o momento era para risos, mas, para meu completo espanto, ele sacudiu meu braço com força e me fez calar a boca. Estava com uma expressão muito séria.
— Isso não foi brincadeira — disse ele severamente, como se eu soubesse do que ele estava falando.
Pedi uma explicação. Disse-lhe que era absurdo que o fato de eu rir do corvo o deixasse zangado, quanto tínhamos rido da cafeteira.
— O que você viu não foi um simples corvo! — exclamou.
— Mas eu o vi, e era um corvo — insisti.
— Não viu nada, seu tolo — falou, numa voz ríspida.
A grosseria dele era injustificável. Disse-lhe que não gostava de irritar as pessoas e que talvez fosse melhor eu ir embora, pais ele não parecia estar disposto a ter gente por perto.
Riu às gargalhadas, como se eu fosse um palhaço fazendo graças para ele. Minha contrariedade e constrangimento aumentaram proporcionalmente.
— Você é muito violento — comentou, com displicência. — Leva-se muito a sério.
— Mas você não estava fazendo a mesma coisa? Levando-se a sério quando ficou zangado comigo?
Respondeu que ficar zangado comigo era a última coisa que ele tinha na cabeça. Olhou para mim de maneira penetrante.
— O que você viu não foi uma concordância do mundo — disse ele. — Os corvos voando nunca são uma concordância. Aquilo foi um presságio!
— Um presságio de quê?
— Uma indicação muito importante a seu respeito — respondeu, enigmaticamente.
Naquele instante mesmo o vento soprou o galho seco de um arbusto bem para a frente de nossos pés.
— Isso foi uma concordância! — exclamou, olhando para mim, os olhos brilhantes, e deu uma gargalhada.
Tive a impressão de que ele estava implicando comigo, inventando as regras de sua estranha brincadeira, enquanto caminhávamos, de modo que ele podia rir, mas eu não. Meu aborrecimento tomou a crescer e eu lhe disse o que achava dele.
Não ficou nada zangado nem ofendido. Riu; e o riso dele me deixou ainda mais angustiado e frustrado. Achei que ele estava propositadamente me humilhando. Resolvi, naquele instante, que para mim já bastava de ‘trabalho de campo’.
Levantei-me e disse que queria começar a voltar para a casa dele porque tinha de partir para Los Angeles.
— Sente-se! — falou, imperiosamente. — Você fica melindrado como uma velha. Não pode partir agora, porque ainda não terminamos.
Eu o detestei. Achei que era um homem desprezível. Começou a cantarolar uma idiota canção popular mexicana. Obviamente, ele estava imitando algum cantor popular. Alongava certas sílabas e contraia outras, fazendo da canção uma coisa muito cômica. Era tão engraçado que acabei rindo.
— Está vendo, você ri dessa canção tola — disse ele. — Mas o homem que a canta assim e aqueles que pagam para ouvi-lo não riem; acham que é sério.
— O que quer dizer com isso? — perguntei.
Pensei que ele tinha arrumado aquele exemplo de propósito para me dizer que eu tinha rido do corvo porque não o levara a sério, assim como não levara a canção a sério. Mas ele tornou a me confundir. Disse que eu era como o cantor e as pessoas que gostavam de sua canção, convencido e muito sério a respeito de alguma tolice que ninguém de juízo devia considerar.
Depois, recapitulou, como que para refrescar minha memória, tudo o que dissera antes sobre o assunto de ‘aprender a respeito das plantas’. Frisou muito que, se eu realmente queria aprender, teria de “remodelar a maior parte de meu comportamento”.
Meu aborrecimento aumentou, a ponto de eu ter de fazer um esforço supremo até para tomar notas,
— Você se leva a sério demais — disse ele, devagar. — É muito importante, na sua concepção. Isso tem de mudar! Considera-se tão importante que acha que tem razão para se aborrecer com qualquer coisa. É tão importante que pode ir embora, se as coisas não lhe agradam. Imagino que você pense que isso demonstra força de caráter. Isso é besteira! Você é fraco e convencido!
Tentei protestar, mas ele não deu atenção. Mostrou-me que em minha vida eu nunca chegara a terminar nada por causa daquela idéia despropositada de importância que eu dava a mim mesmo.
Eu estava assombrado diante da certeza com que ele dizia as coisas. Era verdade, é claro, e isso me deixava não só zangado, mas também ameaçado.
— A importância própria é outra coisa que tem de ser abandonada, assim como a história pessoal — explicou, num tom teatral.
Eu certamente não queria discutir com ele. Era óbvio que eu levava uma desvantagem tremenda; ele não ia voltar para casa até estar disposto a isso, e eu não sabia o caminho. Tinha de ficar com ele.
Fez um movimento repentino e estranho, parecendo estar cheirando o ar em volta de si, sacudindo a cabeça ligeira e ritmadamente. Demonstrava estar num estado de alerta incomum. Virou-se e olhou para mim, com uma expressão de perplexidade e curiosidade. Seus olhos percorreram meu corpo, como que buscando alguma coisa específica; depois, levantou-se abruptamente e começou a andar depressa. Estava quase correndo. Acompanhei-o. Ele manteve um passo muito acelerado por quase uma hora.
Por fim, parou junto de um morro pedregoso e nós nos sentamos à sombra de um arbusto. A caminhada me extenuara completamente, embora eu estivesse de melhor humor. Era estranho como eu tinha mudado. Estava quase exultante; porém, quando tínhamos começado a andar depressa, depois de nossa discussão, eu estava furioso com ele.
— É muito esquisito — falei — mas estou-me sentindo muito bem.
Ouvi o crocitar de um corvo à distância. Dom Juan levou o dedo à orelha direita e sorriu.
— Foi um presságio — disse ele.
Uma pedrinha rolou pelo morro e fez barulho ao cair no chaparral. Ele riu alto e apontou na direção do ruído.
— E isso foi uma concordância — falou.
Depois, perguntou-me se eu estava pronto para falar a respeito de minha importância própria. Eu ri; minha sensação de zanga estava tão distante que não conseguia nem conceber como podia ter ficado tão zangado com ele.
— Não posso entender o que me está acontecendo — comentei. — Fiquei zangado e agora não sei por que não estou mais aborrecido.
— O mundo que nos cerca é muito misterioso. Não revela seus segredos tão facilmente.
Eu gostava de suas frases enigmáticas. Eram provocadoras e misteriosas. Não sabia dizer se eram plenas de significados secretos, ou se eram apenas tolice.
— Se algum dia voltar a este deserto — disse ele — não se aproxime daquele morrinho pedregoso onde paramos hoje. Evite-o como a peste.
— Por quê? O que é que há nele?
— Não é o momento para explicar — respondeu. — Agora, estamos tratando de perder a importância própria. Enquanto você achar que é a coisa mais importante do mundo, não pode apreciar realmente o universo em volta de si. É como um cavalo com viseira, só o que vê é você separado de tudo o mais. — Examinou-me por um momento. — Vou falar com minha amiguinha aqui — disse ele, apontando para uma plantinha.
Ajoelhou-se em frente dela e começou a acariciá-la e a falar-lhe. A princípio não entendia o que ele estava dizendo, mas depois ele trocou de língua e começou a falar com a planta em espanhol. Falou umas banalidades, e depois levantou-se.
— Não importa o que você diz para a planta — falou. — Pode também inventar as palavras; o que é importante é o sentimento de gostar dela, de tratá-la como igual.
Explicou que um homem que colhe plantas tem de desculpar-se todas as vezes que as apanha e deve garantir-lhes que um dia seu próprio corpo servirá de alimento para elas.
— Assim, no final, as plantas e nós ajustamos as contas — disse ele. — Nem nós nem elas são mais ou menos importantes.
— Vamos, fale com a plantinha — insistiu. — Diga-lhe que não se sente mais importante.
— Cheguei a me ajoelhar diante da planta, mas não consegui forçar-me a falar com ela. Senti-me ridículo e ri. Mas não estava zangado.
Dom Juan bateu nas minhas costas e disse que não tinha importância, que pelo menos eu tinha controlado o meu mau humor.
— De agora em diante, fale com as plantinhas — disse ele. — Fale até você perder todo seu senso de importância. Fale com elas até poder fazê-lo na frente dos outros. — Vá até aqueles morros e exercite-se sozinho.
Perguntei se valia eu falar com as plantas calado, em pensamento. Ele riu e bateu em minha cabeça.
— Não! — disse de. — Tem de falar com elas numa voz alta e clara, se quiser que lhe respondam.
Fui para o local determinado, rindo comigo mesmo das excentricidades dele. Até tentei falar com as plantas, mas a minha sensação de ridículo era forte.
Depois do que considerei um intervalo adequado, voltei para onde ele estava. Eu tinha certeza de que Dom Juan. sabia que eu não tinha falado com as plantas.
Não olhou para mim. Fez sinal para eu me sentar a seu lado.
— Olhe bem para mim — falou, — Vou ter uma conversa com minha amiguinha.
Ajoelhou-se diante de uma plantinha e, por alguns momentos, mexeu e contorceu o corpo, falando e rindo. Achei que ele estava maluca.
— Essa plantinha me disse para lhe contar que ela é boa de se comer — falou ele, levantando-se de sua posição ajoelhada. — Disse que um punhado delas conserva a saúde da pessoa, e que há uma quantidade crescendo ali. — Dom Juan apontou para um lugar numa encosta a talvez uns 200 metros de distância. — Vamos verificar.
Ri da palhaçada dele. Estava certo de que encontraríamos as plantas, pois ele era especialista na região e sabia onde se encontravam as plantas comestíveis e medicinais.
Enquanto nos dirigíamos para o lugar, disse-me, com naturalidade, que eu devia prestar atenção na planta, pois era tanto alimento quanto remédio.
Perguntei-lhe, jocosamente, se a planta acabara de lhe contar isso. Ele parou de andar e me examinou com um ar de descrença. Depois, sacudiu a cabeça de um lado para outro.
— Ah! — exclamou ele, rindo. — A sua esperteza o torna mais tolo do que eu pensava. Como é que a plantinha pode contar-me aquilo que eu sei desde que nasci?
Então passou a explicar que sempre soube das diferentes propriedades daquela planta especifica e que ela acabara de lhe dizer que havia uma porção delas crescendo no local que ele mostrara, e que não se importava de que ele me dissesse aquilo.
Quando chegamos à encosta, encontrei um canteiro inteiro das mesmas plantas. Eu quis rir, mas ele não me deu tempo. Quis que eu agradecesse às plantas. Sentia-me extremamente encabulado e não consegui fazê-lo.
Sorriu com benevolência e pronunciou outra de suas frases enigmáticas. Repetiu-a três ou quatro vezes, como que para me dar tempo de decifrar seu significado.
— O mundo que nos cerca é um mistério — disse ele. — E os homens não são melhores do que as outras coisas. Se a plantinha é generosa conosco, devemos agradecer-lhe, senão talvez ela não nos deixe partir.
O modo como ele me olhou ao dizer aquilo me deu um calafrio. Fui depressa para junto das plantas e disse: ‘Obrigado’ em voz alta. Ele começou a rir, aos arrancos, quieto e controlado.
Caminhamos por mais uma hora e depois tomamos o caminho de casa. Em certo momento, fiquei para trás e ele teve de esperar por mim. Olhou para meus dedos, para ver se eu os enroscara. Eu não o fizera. Disse-me, imperiosamente, que sempre que eu caminhasse com ele tinha de observar e imitai os maneirismos dele, ou então não ir de todo.
— Não posso ficar esperando-o como se você fosse uma criança — disse ele, ralhando.
Aquelas palavras me lançaram nas profundezas do constrangimento e confusão. Como seria possível que um homem tão velho pudesse andar tão melhor do que eu? Pensava que eu era atlético e forte e, no entanto, ele tinha mesmo de esperar que eu o alcançasse.
Enrosquei os dedos e, estranhamente, consegui acompanhar o rítmo muito acelerado dele sem qualquer esforço. Na verdade, as vezes sentia que minhas mãos estavam-me empurrando para a frente.
Eu estava exultante. Estava muito feliz, caminhando à toa com o velho índio. Comecei a falar e perguntei várias vezes se ele podia mostrar-me umas plantas de peiote. Olhou para mim, mas não disse uma palavra.”
(Viagem a Ixtlan, Carlos Castañeda)