“Clara explicou que devemos iniciar a recapitulação concentrando nossa atenção, em primeiro lugar,em nossa atividade sexual passada.
— Por que é preciso começar por aí?—perguntei, desconfiada.
—.Porque é aí que grande parte de nossa energia fica aprisionada — explicou Clara.—Por isso temos de liberar essas memórias em primeiro lugar!
— Não creio que meus encontros sexuais tenham sido tão importantes.
— Não importa. Você poderia estar olhando para o teto, mortalmente entediada, ou vendo estrelas cadentes ou fogos de artifício; ainda assim, alguém deixou sua energia dentro de você e foi embora com uma tonelada da sua energia.
Fiquei completamente desconcertada com essa afirmação. Retornar às minhas experiências sexuais agora pareceu-me repugnante.
— Já é ruim o bastante — observei — reviver minhas lembranças infantis. Não vou ficar recordando o que aconteceu com os homens.
Clara fitou-me com uma sobrancelha erguida.
— Além disso — argumentei —, provavelmente você espera que eu confie em você. Mas na verdade, Clara, creio que aquilo que fiz com os homens não interessa a ninguém.
Achei que havia sido explícita. Clara sacudiu a cabeça resolutamente e falou:
— Você quer que os homens de sua vida continuem a alimentar-se de sua energia? Você quer que esses homens se tornem mais fortes à medida que você for se tornando mais forte? Quer ser a fonte de energia desses homens pelo resto da vida? Não- Acho que você não está entendendo a importância do ato sexual nem o alcance da recapitulação.
— Tem razão, Clara. Não compreendo a razão de seu pedido estranho. E o que significa essa história de os homens se tornarem mais fortes porque eu sou sua fonte de energia? Não sou a fonte nem a fornecedora de energia de ninguém. Isto eu lhe garanto.
Ela sorriu e disse que havia cometido um erro ao forçar um confronto de ideologias desta vez.
— Tenha paciência comigo — pediu ela. — Essa é a crença que escolhi e defendo. À medida que você for avançando em sua recapitulação, eu lhe contarei a origem dela. Basta dizer que é parte fundamental da arte que estou lhe ensinando.
— Se é tão importante quanto você afirma, Clara, talvez seja melhor falar-me dela agora—repliquei.—Antes de prosseguirmos com a recapitulação, gostaria de saber em que estou me metendo.
— Tudo bem, se insiste—assentiu ela com um movimento de cabeça. Clara serviu chá de camomila em nossas canecas e acrescentou uma colher de mel na sua. Com a voz peremptória do mestre esclarecendo o neófito, ela explicou que as mulheres, mais do que os homens, são os verdadeiros sustentáculos da ordem social, e que, para cumprir este papel, elas foram educadas, uniformemente em todo o mundo, para estarem a serviço do homem.
— Não faz diferença se elas são criadas como escravas ou se são mimadas e amadas—observou ela.—A finalidade e o destino fundamental das mulheres continuam sendo os mesmos: nutrir, proteger e servir os homens.
Clara olhou para mim, creio que para avaliar se eu estava acompanhando seu argumento. Creio que estava, mas minha reação mais íntima era negar tudo que ela estava dizendo.
— Isto pode ser verdade em alguns casos — concedi —, mas não creio que você possa fazer tamanha generalização e incluir todas as mulheres.
Clara discordou veementemente.
— O lado diabólico da posição servil das mulheres é que ele não parece ser simplesmente um ditame social—disse ela—, mas um imperativo biológico fundamental.
— Espere um momento, Clara — protestei. — Como você chegou a essas conclusões?
Ela explicou que cada espécie possui um imperativo biológico para perpetuar-se, e que a natureza proporciona instrumentos para assegurar a fusão das energias masculina e feminina da maneira mais eficiente. Disse que, na esfera humana, conquanto a função primordial da relação sexual seja a procriação, ela também tem uma função secundária e velada, que é assegurar o fluxo contínuo de energia das mulheres para os homens. Clara enfatizou tanto a palavra “homens” que tive de perguntar:
— Por que você diz isto como se fosse uma avenida de mão única? O ato sexual não é uma troca uniforme de energia entre homem e mulher?
— Não. Negou ela enfaticamente. — Os homens deixam linhas energéticas específicas dentro do corpo das mulheres. Assemelham-se a tênias luminosas que se movimentam no interior do útero, sugando energia.
— Isso me parece definitivamente sinistro — comentei ironicamente.
Ela prosseguiu com sua exposição em total seriedade.
— Elas são colocadas ali por uma razão ainda mais sinistra — falou, ignorando minha risada nervosa —, que é assegurar o suprimento constante de energia para o homem que depositou essas linhas energéticas. Estas, estabelecidas através da relação sexual, recolhem e roubam energia do corpo feminino, a fim de beneficiar o homem que as deixou ali.
Clara falou com tanta certeza que não consegui gracejar e tive de levá-la a sério.
— Não que eu aceite por um instante sequer o que você está dizendo, Clara — falei —, mas, só por curiosidade, como chegou a uma conclusão tão despropositada? Alguém lhe falou disso?
— Sim, meu mestre me falou a respeito. A princípio também não acreditei nele — admitiu ela — mas ele também me ensinou a arte da liberdade, o que significa que aprendi a ver o fluxo da energia. Agora sei que estava certo, pois posso ver os filamentos semelhantes a vermes nos corpos femininos. Você, por exemplo, possui vários deles, todos ainda ativos.
— Digamos que seja verdade, Clara — concedi, inquieta. — Apenas para continuar com o debate, permita-me perguntar-lhe por que isto seria possível? Este fluxo de mão única da energia não seria uma injustiça com as mulheres?
— O mundo inteiro é injusto com as mulheres! — exclamou ela. — Mas o problema não é esse.
— Qual é o problema, Clara? Acho que não percebi.
— O imperativo da natureza é perpetuar nossa espécie. Para assegurar isto, as mulheres têm de carregar um fardo excessivo em seu nível energético básico. O que significa um fluxo de energia que sobrecarrega as mulheres.
— Mas você ainda não explicou por que deve ser assim — insisti, já começando a oscilar com a força de suas convicções.
— As mulheres são o alicerce para a perpetuação da espécie humana — replicou Clara. — Grande parte da energia provém delas, não apenas para gestar, dar à luz e nutrir sua prole, mas também para assegurar que o homem represente seu papel em todo esse processo.
Clara explicou que, teoricamente, esse processo assegura que a mulher alimente seu homem energeticamente através dos filamentos deixados por ele dentro do seu corpo, de modo que o homem se torna misteriosamente dependente da mulher em nível etérico. Isto fica claro na atitude evidente do homem que retorna repetidas vezes para a mesma mulher, a fim de manter sua fonte de sustento. Deste modo, disse Clara, a natureza possibilita aos homens, além do impulso imediato de gratificação sexual, estabelecer vínculos mais permanentes com as mulheres.
— Esses filamentos energéticos, deixados nos úteros das mulheres, também se fundem com a composição energética do filho, caso ocorra a concepção — acrescentou Clara. — Este pode ser o rudimento dos laços familiares, pois a energia do pai se funde com a do feto e permite ao homem sentir que o filho é seu. Estes são alguns fatos da vida que a mãe nunca conta à filha. As mulheres são criadas para serem facilmente seduzidas pelos homens, sem terem a menor idéia das conseqüências do ato sexual em termos do escoamento energético produzido em cada uma delas. Esta é minha opinião e é isto que não é justo.
Ouvindo Clara falar, tive de concordar que parte do que ela estava dizendo fazia sentido para mim num nível corporal profundo. Ela me incentivou a não apenas concordar ou discordar, mas a pensar sobre tudo aquilo e avaliar o que havia dito de maneira corajosa, sem preconceitos e inteligente.
— Já é suficientemente ruim um homem deixar linhas de energia dentro do corpo da mulher — prosseguiu Clara —, embora isto seja necessário para ter filhos e assegurar a sua sobrevivência. Mas ter linhas de energia de dez ou vinte homens dentro dela, sugando sua luminosidade, é mais do que alguém pode suportar. Não admira que as mulheres nunca possam levantar a cabeça.
— Uma mulher pode se livrar dessas linhas? — perguntei, cada vez mais convencida de que havia alguma verdade nas palavras de Clara.
— A mulher carrega esses vermes luminosos por sete anos — disse Clara —e depois desse tempo eles desaparecem ou enfraquecem. Contudo, o problema é que, quando os sete anos estão prestes a chegar ao fim, todo o exército de vermes, do primeiro homem ao último que a mulher teve, torna-se agitado de uma só vez, e a mulher é levada novamente a ter relações sexuais. Então todos os vermes revivem mais fortes do que nunca, para sugar a energia luminosa da mulher por mais sete anos. Na verdade, é um ciclo interminável.
— E se a mulher for celibatária? — indaguei. — Os vermes simplesmente morrem?
— Sim, se ela conseguir resistir ao sexo por sete anos. Mas é
praticamente impossível permanecer celibatária em nossa época e século, a menos que se torne freira ou tenha dinheiro para sustentar-se. E mesmo assim ela continuará precisando de um fundamento lógico totalmente diferente.
— Por que, Clara?
— Porque não é apenas um imperativo biológico que as mulheres tenham relações sexuais, mas também uma injunção social.
Clara ofereceu-me então o exemplo mais confuso e perturbador. Disse que, como somos incapazes de ver o fluxo de energia, podemos perpetuar desnecessariamente padrões de comportamento ou interpretações emocionais associadas a este fluxo de energia invisível. Por exemplo, para a sociedade, exigir que as mulheres se casem ou pelo menos ofereçam-se aos homens é errado, assim como é errado as mulheres sentirem-se insatisfeitas se não tiverem o sêmen masculino dentro de si. É verdade que as linhas energéticas masculinas lhes conferem finalidade, deixa-as satisfeitas do ponto de vista de seus destinos biológicos: alimentar os homens e seus frutos. Mas os seres humanos são inteligentes o bastante para exigir mais de si mesmos do que simplesmente cumprir o imperativo da reprodução. Ela disse que, por exemplo, evoluir constitui igualmente um imperativo, até mesmo mais importante do que a reprodução e que, neste caso, a evolução envolve o despertar das mulheres para seu verdadeiro papel no esquema energético da reprodução.
Finalmente, ela voltou sua argumentação para o nível pessoal e afirmou que eu havia sido criada, assim como todas as outras mulheres, por uma mãe que considerava sua função primordial orientar-me para encontrar um marido adequado, a fim de que eu não tivesse o estigma de solteirona. Realmente eu fora criada, como um animal, para ter sexo, não importa como minha mãe decidisse chamá-lo.
— Você, assim como todas as outras mulheres, foi iludida e forçada à submissão — continuou Clara. — E o lado triste da história é que você ficou aprisionada neste padrão, ainda que não pretenda ser mãe.
Suas afirmações eram tão perturbadoras que comecei a rir de puro nervosismo. Clara não estava nem um pouco transtornada.
— Talvez tudo isto seja verdade, Clara — falei, procurando não parecer condescendente. — De qualquer maneira, porém, de que maneira a lembrança do passado pode mudar alguma coisa? Não são águas passadas?
— Só posso lhe dizer que, para acordar, você tem de romper o círculo vicioso — contrapôs ela, os olhos verdes analisando-me com curiosidade. “
(A Travessia das Feiticeiras, Taisha Abelar)