“O término de uma era”, para don Juan, significava uma descrição acurada de um processo ao qual os xamãs se submetem para o desmantelamento da estrutura do mundo que eles conhecem e para substituí-lo por outro modo de entendimento do mundo que os cerca. Don Juan Matus, como professor, esforçou-se desde o primeiro instante em que nos encontramos, para me introduzir no mundo cognitivo dos xamãs do México antigo. O termo “cognição” representava para mim, naquela ocasião, algo tremendamente controverso. Eu entendia-o como um processo pelo qual reconhecemos o mundo à nossa volta. Certas coisas pertenciam ao domínio desse processo e são facilmente reconhecidas por nós. Outras não, e permanecem desse modo, como extravagâncias, coisas para as quais não possuímos compreensão adequada.
Don Juan afirmava, desde o começo de nossa associação, que o mundo dos brujos do México antigo era diferente do nosso, não de um modo superficial, mas diferente pelo modo como o processo de cognição estava estruturado. Ele afirmava que em nosso mundo, nossa cognição requer a interpretação das informações captadas pelos sentidos, que ele chamava de dados sensoriais. Ele disse que o universo é composto por um número infinito de campos de energia que existem “lá fora” como filamentos luminosos. Tais filamentos luminosos atuam no homem como um organismo. O organismo, como resposta ao estímulos dos filamentos, transforma tais campos de energia em dados sensoriais. Tais dados sensoriais são então interpretados, e essa interpretação representa o nosso sistema de cognição. Meu entendimento do que é a cognição forçou-me a acreditar que ela é um processo universal, do mesmo modo que a linguagem. Existe uma sintaxe diferente para cada linguagem, como deve haver uma ligeira diferença na estruturação de cada sistema de interpretação do mundo.
A afirmação de don Juan, entretanto, de que os xamãs do México antigo tinham um sistema de cognição diferente, representou, para mim, algo equivalente a dizer que eles tinham um modo diferente de comunicação que nada tinha a ver com a linguagem. O que eu desejava desesperadamente que ele dissesse era que seu sistema de cognição diferente era equivalente a um sistema diferente de linguagem mas que era, apesar disso, uma espécie de linguagem. “O término de uma era” significava, para don Juan, que as unidades de uma cognição diferente da usual estavam começando a tomar conta de mim. As antigas unidades, não importava o quanto eram agradáveis e gratificantes para mim, começavam a desaparecer. Um momento grave na vida de um homem!
Talvez a unidade mais apreciada por mim fosse a minha vida acadêmica. Tudo que a ameaçava era uma ameaça ao próprio cerne do meu ser, especialmente se fosse um ataque velado, que não se notava. Isso aconteceu com um professor em que coloquei toda a minha confiança, Professor Lorca.
Envolvi-me no curso do Professor Lorca sobre cognição por causa de sua fama de ser um dos mais brilhantes acadêmicos vivos. Ele era muito elegante, e costumava pentear cuidadosamente seus cabelos louros para o lado. Sua testa era lisa, sem rugas, dando a impressão de que ele era uma pessoa que nunca tivera uma única preocupação em sua vida. Suas roupas apresentavam um corte impecável. Não usava gravata, e essa característica dava-lhe uma expressão jovial. Ele apenas usava gravata quando ia tratar com pessoas importantes.
Em minha inesquecível primeira aula com o Professor Lorca, eu fiquei desnorteado e nervoso ao vê-lo andar de um lado para outro durante minutos que, para mim, estenderam-se até a eternidade. O Professor Lorca continuou movendo seus lábios finos e cerrados para baixo e para cima, adicionando imensas quantidades de tensão que estava gerando naquela sala abafada, de janelas fechadas. De repente, ele parou de andar. Ficou no meio da sala, a pouco mais de um metro do local onde eu estava sentado, e, batendo no estrado um jornal cuidadosamente enrolado, começou a falar.
“Nunca será conhecido…” começou ele.
Todos na sala começaram ao mesmo tempo, ansiosamente, a tomar nota.
“Nunca será conhecido,” repetiu ele, “o que um sapo sente enquanto sentado no fundo de um lago, interpretando o mundo dos sapos ao seu redor.” Sua voz possuía uma força e uma determinação tremendas. “Assim, o que vocês pensam que é isso?” Ele rodava o jornal sobre sua cabeça.
Continuou lendo para a classe um artigo do jornal no qual o trabalho de um biólogo era relatado. No jornal estavam transcritas as suas palavras referentes àquilo que os sapos sentem quando enxames de insetos nadam sobre suas cabeças.
“Esse artigo mostra a falta de cuidado de um repórter, que naturalmente confundiu as palavras do cientista,” afirmou com a autoridade de um professor completo. “Um cientista, não importa quão inferior possa ser seu trabalho, não permitiria nunca que os resultados de sua pesquisa fossem antropomorfizados, a menos, é claro, que seja um pateta.”
Depois dessa introdução, ele proferiu uma palestra brilhante sobre a qualidade ímpar de nosso sistema cognitivo e também do sistema cognitivo de qualquer organismo. Ele trouxe-me, com sua palestra inicial, uma enxurrada de novas idéias e transformou-as em algo extremamente simples, pronto para ser usado. A idéia mais original para mim foi a de que cada indivíduo de cada espécie existente na Terra interpreta o mundo à sua volta utilizando dados reportados por seus sentidos especializados. Ele afirmou que os seres humanos não podem nem mesmo imaginar o que seria, por exemplo, estar num mundo regulamentado pela ecolocalização, como no mundo dos morcegos, onde cada ponto inferido de referência não poderia nem mesmo ser concebido pela mente humana. Ele deixou bem claro que, sob esse ponto de vista, dois sistemas cognitivos entre as espécies, nunca poderiam ser semelhantes.
Assim que eu sai do auditório, depois de uma hora e meia de palestra, senti que estava profundamente impressionado pelo brilhantismo da mente do Professor Lorca. Daquela ocasião para a frente, eu era seu admirador convicto. Descobri que suas palestras eram não somente estimulantes mas provocantes. As suas palestras eram as únicas que eu esperava ansiosamente. Suas excentricidades nada significavam para mim em comparação com a excelência de suas aulas e suas idéias inovadoras no ramo da psicologia.
Quando assisti pela primeira vez às aulas do Professor Lorca, eu já havia estado trabalhando com don Juan por quase dois anos. Era uma característica bem estabelecida em meu padrão de comportamento, acostumado como estava com as rotinas, contar para don Juan tudo o que acontecia comigo. Na primeira oportunidade que tive, relatei para ele o que estava ocorrendo com o Professor Lorca. Eu colocava-o nas alturas e contava para don Juan sem nenhum acanhamento que o Professor Lorca era para mim o modelo a ser seguido. Don Juan pareceu muito impressionado com a minha demonstração de genuína admiração, apesar de ter me dado um estranho aviso.
“Não admire as pessoas de longe,” disse ele. “Esse é o modo mais seguro de criarem-se seres mitológicos. Fique perto de seu professor, fale com ele, veja o que ele é como homem. Teste-o. Se o comportamento de seu professor for o resultado de sua convicção de que ele é um ser que vai morrer, então tudo o que ele fizer, não importa o quanto estranho seja, deve ser premeditado e definitivo. Se o que ele diz for simplesmente palavras, ele não vale um tostão furado.”
Senti-me insultado ao máximo pelo que considerei uma franqueza rude de don Juan. Pensei que ele estivesse com um pouquinho de ciúme pelos meus sentimentos a respeito do Professor Lorca. Logo que formulei tal pensamento em minha mente, senti-me aliviado; entendera tudo.
“Diga-me, don Juan,” disse eu para terminar a conversa de um modo diferente, “o que é na verdade um ser que vai morrer? Já ouvi várias vezes você referir-se a isso, mas na verdade você nunca definiu para mim o que é.”
“Os seres humanos são seres que vão morrer,” disse ele. “Os brujos afirmam com determinação que o único modo de ter um ponto de apoio em nosso mundo, e em tudo o que fazemos, é através da aceitação total de que somos seres que vão morrer. Sem essa aceitação básica, nossas vidas, nossas ações, e o mundo em que vivemos são coisas com as quais não podemos lidar adequadamente.”
“Mas é tão difícil assim a mera aceitação dessa premissa?” perguntei quase protestando.
“Pode apostar sua vida!” disse don Juan sorridente. “Entretanto não é a mera aceitação que realiza o truque. Temos que corporificá-la e vivê-la ao longo de toda a nossa jornada. Os brujos através dos tempos dizem que a visão de nossa morte é a coisa mais sóbria que existe. O que há de errado com os seres humanos, e isso acontece desde tempos imemoriais, é que, sem nunca atestar isso com muitas palavras, acreditamos que entramos no reino da imortalidade. Nós nos comportamos como se nunca fossemos morrer – o que é uma arrogância infantil. Mas o que é pior ainda que esse senso de imortalidade é aquilo que o acompanha: o sentimento de que podemos engolfar com nossa mente esse nosso universo inconcebível.”
Uma justaposição de idéias mais que letal tomou conta de mim: a sabedoria de don Juan e o conhecimento do Professor Lorca. Ambos eram difíceis, obscuros, abrangentes, e muito atraentes. Nada mais havia para mim senão aceitar o curso dos acontecimentos e acompanhá-lo para aonde quer que me levasse.
Segui ao pé da letra as sugestões de don Juan a respeito do meu relacionamento com o Professor Lorca. Tentei, durante um semestre inteiro, aproximar-me dele, conversar com ele. Fui religiosamente ao seu gabinete durante as horas de expediente, mas parecia que ele nunca dispunha de tempo para receber-me. Mas mesmo sem poder falar com ele, eu o admirava irrestritamente. Cheguei até mesmo a admitir que ele nunca iria falar comigo. Isso não faria nenhuma diferença; o que importavam eram as idéias que colhi de suas magníficas aulas.
Relatei para don Juan todas as minhas descobertas intelectuais. Li muito sobre o assunto cognição. Don Juan Matus pressionava-me, mais do que nunca, a estabelecer contato direto com a fonte de minha revolução intelectual.
“É imperativo que você fale com ele,” disse ele com um toque de urgência na voz. “Os brujos não admiram as pessoas à distância. Eles falam com essas pessoas; eles travam conhecimento com as mesmas. Estabelecem pontos de referência. Comparam. O que você está fazendo é um pouco infantil. Você está admirando à distância. Isso parece muito com o que acontece com o homem que tem medo de mulher. No final, suas gônadas falam mais alto que seu medo e compelem-no a adorar a primeira mulher que diga um ‘alô’ para ele.”
Eu dobrei meus esforços para tentar aproximar-me do Professor Lorca, mas ele era como uma fortaleza impenetrável. Quando contei para don Juan minhas dificuldades, ele explicou-me que os brujos consideram qualquer coisa relativa à interação com as pessoas, não importa quão insignificante seja, como estar num campo de batalha. Nesse campo de batalha, os brujos executam o melhor de sua mágica, o melhor de seus esforços. Ele assegurou- me que a melhor arma, o melhor truque em tais casos era algo que nunca fora o meu forte: enfrentar os oponentes abertamente. Ele expressou sua aversão para com as pessoas tímidas que evitam o relacionamento a um ponto tal que, mesmo interagindo, elas meramente inferem ou deduzem, com relação aos seus estados psicológicos, o que está acontecendo sem percebem o que realmente está acontecendo. Elas interagem sem nunca fazer parte da interação.
“Olhe sempre para a pessoa que esteja disputando um cabo de guerra com você,” continuou ele. “Não apenas puxe o cabo; olhe-o nos olhos. Você então perceberá que ele é um homem, do mesmo modo que você. Não importa o que diga, não importa o que faça, ele está tremendo dentro de suas botas, igualzinho a você. Olhe com um olhar que torne seu oponente indefeso, ainda que por um instante; só então aplique seu golpe.”
Certo dia, a sorte estava do meu lado: cerquei o Professor Lorca num canto do hall de seu escritório.
“Professor Lorca, “ disse eu, “poderia falar com o senhor por um momento?”
“Ora, quem é você?” disse ele com toda a naturalidade, como se eu fosse seu melhor amigo e ele estivesse perguntando-me como estava passando.
O Professor Lorca foi bruto como uma porta, mas suas palavras não afetaram- me. Ele sorriu zombeteiramente, com seus lábios cerrados, como que encorajando-me a cair fora ou dizer algo significativo.
“Sou um estudante de antropologia, Professor Lorca,” disse eu, “Estou envolvido com uma situação de campo onde tive a oportunidade de aprender algo sobre o sistema de cognição dos brujos.”
O Professor Lorca olhou para mim com desconfiança e aborrecimento. Seus olhos pareceram dois pontos azuis cheios de rancor. Penteou o cabelo para trás com as mãos, como se eles tivessem caído em sua face.
“Trabalho no México com um feiticeiro de verdade,” continuei, tentando encorajar uma resposta de sua parte. “Ele é um feiticeiro de verdade, preste atenção. Custou-me mais de um ano para interessá-lo em consentir falar comigo.”
A face do Professor Lorca relaxou-se; ele abriu a boca e, balançando sua mão de modo muito delicado em frente de meus olhos, como se girasse uma massa de pizza com ela, falou comigo. Não pude deixar de notar suas abotoaduras de esmalte dourado, as quais combinavam perfeitamente com seu blazer esverdeado.
“E o que você quer de mim?” perguntou ele.
“Gostaria que você me ouvisse por um momento,” disse eu, “e ver se o que eu irei dizer poderá, de alguma forma, ser de seu interesse.”
Ele fez um gesto de relutância e resignação com seus ombros, abriu a porta de sua sala, e convidou-me a entrar. Eu sabia que não tinha um minuto a perder e forneci-lhe uma descrição direta de minha situação no que diz respeito à pesquisa de campo. Disse-lhe que estava aprendendo procedimentos que nada tinham a ver com tudo aquilo que pode ser encontrado na literatura antropológica do xamanismo.
Ele moveu os lábios por um momento, sem dizer nenhuma palavra. Quando falou, ele destacou que a falha dos antropólogos em geral é que eles nunca concedem a si mesmos tempo suficiente para se tornarem totalmente cientes de todas as nuanças do sistema de cognição particular usado pelas pessoas que estão estudando. Ele definiu “cognição” como um sistema de interpretação que, pelo uso, permite que as pessoas utilizem, com grande perícia, todas as nuanças dos significados que fazem parte do meio social considerado.
As palavras do Professor Lorca iluminaram o escopo total de minhas pesquisas de campo. Sem ter o comando de todas as nuanças do sistema cognitivo dos xamãs do México antigo, seria totalmente supérfluo para mim formular qualquer idéia sobre tal mundo. Ainda que o Professor Lorca não dissesse nenhuma outra palavra para mim, o que acabara de dizer era mais do que suficiente. O que se seguiu foi um discurso maravilhoso sobre a cognição.
“Seu problema,” disse o Professor Lorca, “é que o sistema cognitivo de nossa vida do dia-a-dia com o qual estamos todos familiarizados, virtualmente a partir do dia em que nascemos, não é igual ao sistema cognitivo do mundo dos brujos.”
Essa afirmação criou em mim um estado de euforia. Agradeci o Professor Lorca profusamente e assegurei-lhe que só existia um modo de agir no meu caso particular: seguir suas idéias através de céus e terra.
“O que eu lhe disse, é claro, é conhecimento geral,” disse ele enquanto acompanhava-me até a saída. “Toda a pessoa que lê o suficiente tem conhecimento de tudo o que eu estive falando para você.”
Despedimo-nos um do outro quase como amigos. Meu relato a don Juan do sucesso de minha aproximação do Professor Lorca gerou uma reação estranha. Don Juan parecia, por um lado, estar vibrando e por outro muito preocupado.
“Eu tenho um sentimento que seu professor não é bem o que afirma ser,” disse ele. “Isso, é claro, do ponto de vista de um feiticeiro. Talvez fosse melhor você retirar-se agora, antes que tudo isso se torne muito envolvente e desgastante. Uma das facetas da arte de um feiticeiro é saber quando deve parar. Parece- me que você já tirou de seu professor tudo o que ele tinha para ser aproveitado por você.”
Eu reagi imediatamente com uma enxurrada de palavras para defender o Professor Lorca. Don Juan acalmou-me. Disse que não era sua intenção criticar ou julgar quem quer que fosse, mas segundo sua percepção, muito poucas pessoas sabem quando parar e um número menor ainda sabe como realmente utilizar o seu conhecimento.
Apesar do aviso de don Juan, eu não deixei de me encontrar com o Professor Lorca; em vez disso, tornei-me um aluno confiante, um seguidor, um admirador dele. Ele pareceu sinceramente interessado em meu trabalho, embora tenha ficado tremendamente frustado com minha relutância e inabilidade em formular conceitos bem definidos sobre o sistema cognitivo do mundo dos brujos.
Um dia, o Professor Lorca formulou para mim o conceito referente a um cientista visitante de outro mundo cognitivo. Ele admitiu sua boa vontade em ter uma mente aberta, e brincar, como um cientista social, com a possibilidade de um sistema cognitivo diferente. Ele imaginou uma pesquisa real na qual seriam reunidos e analisados certos documentos. Certos problemas de cognição seriam delineados e entregues aos xamãs que eu conhecia para que fosse medida, por exemplo, sua capacidade de focalizar sua cognição em dois aspectos diversos de comportamento.
Ele pensou que os testes teriam início com um paradigma simples no qual eles tentariam compreender e reter textos escritos que ele iriam ler enquanto jogavam poker. O teste iria escalar, medir, por exemplo, sua capacidade de focalizar sua cognição em coisas complexas que lhes seriam ditas enquanto dormiam, e assim por diante. O Professor Lorca queria uma análise linguística a ser realizada com as declarações dos xamãs. Ele queria medir realmente suas respostas em termos de presteza e precisão, e de outras variáveis que se tornassem prevalentes à medida que o projeto progredisse.
Don Juan rolou de rir quando contei-lhe a proposta do Professor Lorca de medir a cognição dos xamãs.
“Agora eu realmente gosto do seu professor,” disse ele. “Mas você não pode estar falando sério com relação a essa idéia de medir nossa cognição. O que poderia seu professor extrair da medição de nossas respostas? Ele iria ficar convencido de que nós somos um bando de imbecis, pois isso é o que somos. Não nos é possível ser mais inteligentes, mais ligeiros que o homem comum. Não é culpa dele, entretanto, acreditar que possa comparar unidades de cognição de sistemas diferentes. A culpa é sua. Você não conseguiu explicar para seu professor que quando os brujos falam sobre o sistema cognitivo dos xamãs do México antigo, eles falam sobre coisas que não possuem similares no mundo do dia-a-dia.
“Por exemplo, perceber a energia diretamente como flui no universo é uma unidade de cognição da qual vivem os xamãs. Eles vêem como a energia flui e então seguem seu fluxo. Se esse fluxo é obstruído, eles deslocam-se para algo totalmente diferente. Os xamãs vêem linhas no universo. Sua arte, ou sua atividade, é escolher a linha que os conduzirá, sob o ponto de vista da percepção, a regiões que não possuem nenhum nome. Pode-se dizer que os xamãs reagem imediatamente às linhas do universo. Eles vêem os seres humanos como bolas luminosas, e ele procuram em si mesmos os seus fluxos de energia. Naturalmente, eles reagem instantaneamente a essa visão. Isso faz parte de sua cognição.”
Disse a don Juan que eu não poderia falar nada disso com o Professor Lorca porque eu não tinha feito nenhuma das coisas que ele descreveu. Minha cognição permaneceu a mesma.
“Ah!” exclamou ele. “Você simplesmente não teve tempo ainda de incorporar as unidades de cognição do mundo dos xamãs.”
Saí da casa de don Juan mais confuso que nunca. Havia uma voz dentro de mim que virtualmente exigia que eu terminasse de vez com os meus esforços junto ao Professor Lorca. Eu entendera como don Juan estava certo quando uma vez disse-me que as coisas práticas em que os cientistas estavam interessados conduziam à construção de máquinas cada vez mais complexas. Elas não eram coisas práticas que levavam à transformação do curso da vida do indivíduo a partir de seu interior. Elas não eram engrenadas para que se atingisse a vastidão do universo como uma aventura, como uma experiência pessoal. As estupendas máquinas que existem, ou mesmo as que estão sendo construídas, são atividades culturais, cujo uso conduzem a satisfações vicárias, mesmo para os próprios construtores das mesmas. A sua única recompensa é monetária.
Ao destacar tudo isso para mim, don Juan teve sucesso em colocar-me num estado de espírito ainda mais inquisitivo. Comecei realmente a questionar as idéias do Professor Lorca, algo que nunca fizera antes. Nesse meio tempo, o Professor Lorca continuava com sua fala pomposa afirmando verdades estonteantes sobre a cognição. Cada declaração era mais severa que a anterior e assim, mais incisiva.
No final do meu segundo semestre com o Professor Lorca, atingi um impasse. Não havia nenhuma maneira no mundo para que eu pudesse construir uma ponte entre as duas linhas de pensamento: a de don Juan e a do Professor Lorca. Elas eram paralelas. Entendia a tendência do Professor Lorca em medir e qualificar o estudo da cognição. A Cibernética estava justamente despontando naquela época, e os aspectos práticos do estudo da cognição eram uma realidade. Mas também acontecia o mesmo com o mundo de don Juan, o qual não podia ser medido com os instrumentos padrão da cognição. Eu era alguém privilegiado que podia testemunhá-lo, pelas ações de don Juan, mas não as experimentara eu mesmo. Sentia que havia algum empecilho que impossibilitava a construção de uma ponte ligando os dois mundos.
Disse tudo isso para don Juan em uma de minhas visitas a ele. Ele disse que aquilo que eu considerava um empecilho, e portanto o fator que tornava impossível a construção de uma ponte entre os dois mundos, não era muito acurado. Em sua opinião, o empecilho era algo muito mais abrangente que a circunstância individual de uma pessoa.
“Talvez você possa lembrar-se do que eu disse ser uma das maiores falhas do ser humano comum,” disse ele.
Não consegui lembrar-se de nada em particular a esse respeito. Ele destacara tantas falhas que atingiam o homem comum, que minha mente rodou no vazio.
“Você quer algo específico,” disse eu. “Não consigo lembrar-me de nada.”
“O grande defeito de que estou falando,” disse ele, “é algo que devemos levar em conta cada segundo de nossa existência. Para mim, ele é o assunto dos assuntos, algo que irei repetir para você uma vez atrás da outra até que ele salte de seus ouvidos.”
Depois de um longo momento, desisti de continuar tentando lembrar-me.
“Nós somos seres que estamos a caminho da morte,” disse ele. “Nós não somos imortais, mas agimos como se fossemos. Essa é a falha que nos derrota como indivíduo e que nos derrotará como espécie algum dia.”
Don Juan afirmou que a vantagem dos brujos sobre seus semelhantes é que os brujos sabem que são seres que estão a caminho da morte e não se permitem desviar desse conhecimento. Ele enfatizou que um esforço enorme deve ser empregado para evocar e manter esse conhecimento como uma certeza completa.
“Por que é tão difícil para nós admitir algo que é tão verdadeiro?” perguntei, desnorteado pela magnitude de nossa contradição interna.
“Isso realmente não é culpa do homem,” disse ele num tom conciliatório. “Algum dia eu irei contar para você alguma coisa mais sobre tais forças que fazem com que o homem aja como um burro.”
Não havia nada mais a dizer. O silêncio que se seguiu foi devastador. Eu nem mesmo quis saber a que forças don Juan estava referindo-se.
“Não é nenhuma proeza minha avaliar seu professor à distância,” continuou don Juan. “Ele é um cientista imortal. Ele nunca irá morrer. E quando aparecer qualquer preocupação a respeito da morte, estou certo de que ele já cuidou dela. Ele tem um pedacinho de terra em que será enterrado, e uma valiosa apólice de seguro de vida que irá cuidar de sua família. Tendo cuidado dessas duas premissas, ele não pensa mais sobre a morte. Ele só pensa sobre seu trabalho.
“O Professor Lorca consegue falar sensatamente,” continuou don Juan, “ porque está preparado para usar as palavras acuradamente. Mas ele não está preparado para levar a sério a si mesmo como alguém a caminho da morte. Sendo imortal, ele não pode saber como fazer isso. Não faz nenhuma diferença quão complexas sejam as máquinas que o homem consegue inventar e construir. As máquinas não podem ajudar o homem de nenhuma maneira em seu compromisso inevitável: seu encontro com o infinito.
“O nagual Julian usava dizer-me,” continuou ele, “a respeito dos generais conquistadores da Roma antiga. Quando retornavam vitoriosos para casa, imensas paradas eram realizadas em sua honra. Exibindo os tesouros que conquistaram, e as pessoas que derrotaram e transformaram em escravos, os conquistadores desfilavam, dirigindo suas carruagens de guerra. Um escravo ia sempre ao seu lado e seu trabalho era murmurar em seus ouvidos que toda a fama e glória são transitórias.
“Se nós somos vitoriosos de algum modo,” continuou don Juan, “nós não temos ninguém para murmurar em nossos ouvidos que nossas vitórias são passageiras. Os brujos, entretanto, têm uma vantagem; como seres em seu caminho para a morte, eles têm alguém para murmurar em seus ouvidos que tudo é efêmero. Quem murmura é a morte, a conselheira infalível, a que nunca mentirá para ninguém.”
(Carlos Castañeda, O Lado Ativo do Infinito)
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