“— Muito bem, vamos entrar — falou ele, puxando delicadamente a manga de minha blusa. — Um alerta. Não olhe fixamente para nada neste quarto. Olhe tudo que quiser, mas superficialmente, apenas de relance.
Ele abriu a porta e entramos em seu quarto extravagante. Morar nas árvores fizera-me esquecer por completo a primeira vez em que entrara naquele quarto, no dia em que Nelida e Clara haviam partido. Agora lá estava eu de novo, surpresa com os objetos bizarros que enchiam o quarto. As primeiras coisas que vi foram quatro luminárias, uma no centro de cada parede. Não consegui sequer começar a conceber que tipo de luminária seriam aquelas. O quarto e tudo que continha eram iluminados por uma estranha luz âmbar suave. Eu conhecia suficientemente os equipamentos elétricos para saber que nenhuma lâmpada comum, ainda que circundada por um abajur feito do tecido mais estranho, poderia irradiar aquele tipo de luminosidade.
Senti Emilito segurando meu braço para me ajudar a ultrapassar uma cerca de trinta centímetros que separava uma pequena área quadrada no canto sudoeste do quarto.
— Bem-vinda à minha caverna — falou, com um sorriso largo, ao entrarmos na área delimitada.
Naquele quadrado havia uma mesa comprida, meio oculta por uma cortina preta e uma fila de quatro cadeiras com um desenho fora do comum. Cada cadeira tinha um espaldar alto e ovalado que se recurvava em torno do assento e, em vez de pernas, uma base redonda, aparentemente sólida. As quatro cadeiras estavam de frente para a parede.
— Não fixe o olhar — lembrou-me o caseiro, ajudando-me a sentar em uma das cadeiras.
Percebi que elas eram feitas de algum tipo de material plástico. O assento arredondado era acolchoado, embora eu não soubesse dizer como; era duro como madeira, mas possuía uma elasticidade que cedia a cada vez que eu me movimentava no assento. E também girava quando eu me movia lateralmente. O conquanto igualmente duro. Todas as cadeiras tinham um tom azul-celeste. O caseiro sentou-se na cadeira ao lado da minha. Girou sua cadeira, colocando-a de frente para o centro do quarto e, com uma voz estranhamente distorcida, pediu-me para girar também. Ao fazer o que ele me pedira, soltei um grito gutural. O quarto que eu havia cruzado há um instante havia desaparecido. No lugar dele, eu contemplava um amplo espaço vazio, com uma luminosidade cor de pêssego. Agora o quarto se havia ampliado até o espaço aparentemente infinito, bem diante de meus olhos. O horizonte que eu descortinava era negroazeviche. Sufoquei outro grito, pois tive a sensação de um buraco na boca do estômago. Senti o chão desaparecendo sob meus pés e eu estava sendo puxada para aquele espaço. Não mais sentia a cadeira giratória sob mim, embora ainda estivesse sentada nela.
Ouvi Emilito dizer “vamos girar de volta”, mas eu não tinha forças para fazer a cadeira girar. Ele deve ter feito isso por mim, pois, de súbito, percebi-me novamente olhando para o canto do quarto.
— Incrível, não é? — perguntou o caseiro, sorrindo.
Eu não consegui pronunciar uma única palavra, nem tampouco fazer
perguntas que eu sabia não terem respostas. Passado um ou dois minutos, Emilito
fez minha cadeira girar mais uma vez, a fim de proporcionar-me outra visão do
infinito. A imensidão daquele espaço me pareceu tão aterrorizante que fechei
os olhos. Senti a cadeira girando mais uma vez.
— Agora saia da cadeira — pediu ele.
Obedeci automaticamente e fiquei de pé, tremendo involuntariamente, tentando recuperar a voz. Ele me virou para colocar-me de frente para o quarto. Tomada de pavor, recusei-me, teimosa ou sabiamente, a abrir os olhos. O caseiro bateu com os nós dos dedos no topo da minha cabeça, o que fez meus olhos abrirem. Para meu alívio, o quarto não era o espaço negro infinito, mas tinha a mesma aparência de quando eu havia entrado. Esquecendo-me de suas advertências para apenas dar uma olhada rápida nas coisas, fixei meus olhos em cada um daqueles objetos não-identificáveis.
— Por favor, Emilito, diga-me, o que significa tudo isso? — perguntei.
— Eu sou apenas o caseiro—disse Emilito.—Tudo isso está sob meus cuidados.—Ele percorreu o quarto com um gesto de sua mão. — Não tenho a menor idéia do que seja isso. Na verdade, nenhum de nós sabe o que é isso. Herdamos isso juntamente com a casa de meu professor, o nagual Julian, que por sua vez a herdou de seu professor, o nagual Elias, que também a herdou.
— Parece os bastidores de um teatro — falei. — Mas isso é uma ilusão, não é, Emilito?
— Isso é feitiçaria! Você é capaz de perceber agora, pois liberou uma quantidade suficiente de energia pra expandir sua percepção. A tragédia é que a maior parte de nossa energia fica aprisionada com inquietações tolas. A recapitulação é a chave. Ela libera essa energia aprisionada e voilà! Você vê o infinito bem diante de seus olhos.
Soltei uma risada quando Emilito disse voilà, palavra tão incongruente quanto inesperada. O riso aliviou parte de minha tensão.
— Você está sonhando, mas tudo isso é real. Tão real que pode nos matar, desintegrando-nos.
Racionalmente, eu não podia explicar o que estava vendo; portanto, não podia acreditar nem duvidar de minha percepção. Meu dilema era insuperável, assim como meu pânico. O caseiro aproximou-se de mim.
— A feitiçaria vai muito além dos gatos pretos e pessoas nuas dançando num cemitério à meia-noite, fazendo bruxarias para outras pessoas—sussurrou ele. — A feitiçaria é fria, abstrata, impessoal. Por isso nós chamamos o ato de sua percepção de travessia dos feiticeiros, ou vôo para o abstrato. Para resistir à sua atração aterradora, precisamos ser fortes e determinados; ela não serve para os tímidos ou fracos. Era isso que o nagual Julian costumava dizer.
Meu interesse era tamanho que me forçou a ouvir com uma concentração inigualável cada palavra que Emilito estava dizendo; durante todo o tempo, meus olhos estavam cravados nos objetos do quarto. Cheguei à conclusão de que nenhum deles era real. No entanto, como obviamente eu os estava percebendo, comecei a ponderar se eu também não era real ou se eu os estava inventando. Não que eles fossem indescritíveis; simplesmente eram irreconhecíveis para a minha mente.
— Agora, prepare-se para o vôo dos feiticeiros — disse Emilito. — Agarre-se a mim como se a sua vida dependesse disso. Agarre meu cinto se você precisar ou monte em minhas costas. Faça qualquer coisa, mas não se solte.
Antes que eu pudesse perguntar o que ele pretendia fazer em seguida, Emilito me movimentou em torno da cadeira e me fez sentar de frente para a parede. Em seguida, girou a cadeira em 90 graus, de modo que novamente eu fiquei de frente para o centro do quarto naquele espaço infinito aterrorizante. Ele ajudou a me levantar, segurando-me pela cintura, e me fez dar alguns passos para o infinito.
Para mim era quase impossível andar; minhas pernas pareciam pesar uma tonelada. Senti o caseiro me empurrando e levantando. De repente, uma força descomunal me sugou e eu não estava mais andando, mas sim deslizando no espaço. O caseiro deslizava ao meu lado. Lembrei-me de seu aviso e me agarrei ao seu cinto, na hora exata; pois nesse momento outra onda de energia me fez acelerar ao máximo. Gritei para que ele me detivesse. Emilito me colocou rapidamente em suas costas e me agarrei a ele como se disso dependesse minha vida. Fechei os olhos com força, mas de nada adiantou. Eu via a mesma vastidão à minha frente, de olhos fechados ou abertos. Nós estávamos pairando em algo que não era o ar; tampouco estávamos pairando sobre a terra. Meu maior medo era que uma explosão monumental de energia me fizesse soltar as costas do caseiro. Eu lutei com todas as minhas forças para me agarrar e manter minha posição e minha concentração.
Tudo terminou tão abruptamente como começara. Fui sacudida por outra rajada de energia e me percebi molhada de suor, de pé, ao lado da cadeira azul. Meu corpo tremia incontrolavelmente. Eu estava ofegante e sedenta por um pouco de ar. Meus cabelos caíam sobre meu rosto, úmidos e emaranhados. O caseiro me empurrou para o assento e girou de frente para a parede.
— Não se atreva a fazer xixi nas calças enquanto estiver sentada nesta cadeira — avisou, asperamente.
— Você é capaz de perceber como eu—disse Emilito.—Mas você ainda não tem controle no mundo novo que está percebendo. Este controle vem com uma vida de disciplina e armazenamento de poder.
— Nunca vou conseguir explicar isto a mim mesma — falei, e eu mesma girei a cadeira, colocando-me de frente para o centro do quarto, para dar mais uma olhada naquele infinito róseo. Agora os objetos que via no quarto eram diminutos, semelhantes a peças de xadrez em um tabuleiro. Precisei procurá-los deliberadamente para percebê-los. Por outro lado, aquele espaço frio e impressionante encheu minha alma de implacável terror. Lembrei-me do que Clara dissera a respeito dos videntes que o haviam buscado; como eles haviam olhado fixamente para aquela imensidão e como esta retribuíra o olhar, com uma indiferença fria e inflexível. Clara nunca me dissera que ela mesma contemplara aquele infinito, mas agora eu sabia que ela o fizera. Entretanto, de que me adiantaria saber naquele momento? Eu teria apenas soltado uma gargalhada ou a teria considerado fantasiosa. Agora era minha vez de olhar o infinito sem esperança de compreender aquilo que estava contemplando. Emilito tinha razão, seria necessário toda uma vida de disciplina e armazenamento de poder para eu compreender que estou contemplando o ilimitado.”
(A Travessia das Feiticeiras, Taisha Abelar)