“A Gorda contou como Dom Juan as tinha instruído sobre aquela dicotomia tão importante, tonal-nagual. Disse que um dia o Nagual mandou que eles todos se reunissem a fim de levá-los para um longo passeio a um vale desolado e rochoso nas montanhas. Ele fez um embrulho grande e pesado, com coisas muito variadas; nele pôs até o rádio de Pablito, Depois deu o embrulho para Josefina carregar, pôs uma mesa pesada nos ombros de Pablito e todos começaram a caminhar. Fez com que todos se revezassem carregando o embrulho e a mesa, enquanto caminhavam quase 65 quilômetros até aquele lugar alto e ermo. Quando chegaram lá o Nagual mandou que Pablito colocasse a mesa bem no centro do vale. Depois pediu a Josefina que arrumasse o conteúdo do embrulho sobre a mesa. Quando a mesa ficou cheia, ele lhes explicou a diferença entre o tonal e o nagual, nos mesmos termos em que me explicara, num restaurante na Cidade do México, só que no caso deles, o exemplo que ele deu era infinitamente mais gráfico.
Ele lhes disse que o tonal é a ordem de que tomamos consciência em nosso mundo quotidiano e também a ordem pessoal que carregamos pela vida em nossos ombros, como eles carregaram a mesa e o embrulho. O tonal pessoal de cada um de nós era como a mesa naquele vale, uma pequena ilha cheia das coisas que conhecemos. O nagual, por outro lado, era a fonte inexplicável que mantinha aquela mesa no lugar e que parecia a vastidão daquele vale deserto.
Ele lhes disse que os feiticeiros são obrigados a vigiarem seus tonais à distância, a fim de terem uma compreensão melhor do que realmente há em sua volta. Fez com que fossem até a uma serra de onde pudessem ver toda a região. De lá a mesa quase não se via. Depois ele fez com que voltassem à mesa e se postassem junto dela a fim de mostrar que um homem comum não tem o alcance que tem o feiticeiro porque o homem comum está bem sobre sua mesa, agarrado a cada artigo dela.
Depois mandou que cada um deles, um de cada vez, olhasse com naturalidade para os objetos sobre a mesa e pôs à prova a memória deles escolhendo alguma coisa e escondendo-a, para ver se eles estavam atentos. Todos passaram muito bem nessa prova, Ele observou que a capacidade que eles tinham de se lembrar com tanta facilidade dos artigos naquela mesa devia-se ao fato de que todos tinham desenvolvido sua atenção ao tonal, ou sua atenção sobre a mesa.
Depois ele pediu que eles olhassem com naturalidade para tudo o que estivesse no solo por baixo da mesa e pôs à prova a memória deles tirando as pedras, gravetos ou o que houvesse. Nenhum deles se lembrava do que tinha visto sob a mesa.
O Nagual então tirou tudo de cima da mesa e mandou que cada um, um de cada vez, se deitasse sobre a mesa, de barriga para baixo, e examinasse o solo debaixo dela. Explicou-lhes que para um feiticeiro o nagual era o local debaixo da mesa. Como era inimaginável lidar com a imensidão do nagual, exemplificado por aquele lugar vasto e ermo, os feiticeiros tomavam como seu terreno de atividade o local diretamente abaixo da ilha do tonal, mostrado graficamente pelo que estava sob a mesa. O local era o domínio do que ele chamava de segunda atenção, ou a atenção do nagual, ou a atenção sob a mesa. Essa atenção era alcançada somente depois que os guerreiros tivessem limpado o topo de suas mesas. Ele disse que alcançar a. segunda atenção reunia as duas atenções numa única unidade e essa unidade era a totalidade do ser.
A Gorda disse que a demonstração dele fora tão clara para ela que compreendeu logo por que o Nagual a fizera limpar a sua própria vida, varrer o tonal de sua ilha, como ele o chamara. Ele achava que tinha realmente tido sorte por ter seguido todas as sugestões que ele lhe fizera. Ele ainda estava longe de unificar suas duas atenções, mas sua diligência resultara numa vida impecável, que eram, conforme ele lhe assegurara, o único meio dela perder a forma humana. Perder a forma humana era o requisito necessário para unificar as duas atenções.”
(O Segundo Círculo do Poder, Carlos Castañeda)