“Logo depois do almoço, Dom Juan e eu nos sentamos para conversar.
Ele começou sem qualquer preâmbulo. Anunciou que tínhamos chegado ao final de sua explicação. Disse que havia discutido comigo, nos mínimos detalhes, todas as verdades sobre a consciência descoberta pelos antigos videntes. Salientou que eu agora sabia a ordem na qual os novos videntes as dispuseram. Nas últimas sessões de sua explicação, disse, fizera um relato detalhado das duas forças que ajudam o deslocamento de nossos pontos de aglutinação: o empuxo da terra e a força rolante. Explicara também as três técnicas desenvolvidas pelos novos videntes — espreita, intenção e sonhar — e seus efeitos sobre o movimento do ponto de aglutinação.
— Agora, a única coisa que ainda lhe resta fazer para completar a explicação do domínio da consciência — continuou — é quebrar sozinho a barreira da percepção. Você deve deslocar seu ponto de aglutinação sem ajuda de ninguém, e alinhar outra grande faixa de emanações.
“Não fazê-lo transformará tudo o que você aprendeu e fez comigo em mera conversa, simples palavras. E as palavras não valem quase nada.”
Explicou que, quando o ponto de aglutinação está-se movendo para fora de sua posição costumeira e atinge certa profundidade, rompe uma barreira que momentaneamente destrói sua capacidade de alinhar emanações. Experimentamos isso como uma lacuna perceptiva. Os antigos videntes chamavam esse momento de muro de névoa, porque uma barreira de névoa aparece sempre que o alinhamento das emanações falha. Disse que havia três maneiras de lidar com isso, Podíamos considerá-lo abstratamente como uma barreira da percepção; podia ser sentido como o ato de atravessar com o corpo inteiro um painel de papel esticado; ou podia ser visto como uma parede de névoa.
Ao longo de meu aprendizado com Dom Juan, ele me levara inúmeras vezes a ver a barreira da percepção. No início, gostei da idéia de uma parede de névoa. Dom Juan preveniu-me que os antigos videntes também preferiam vê-la desse modo. Disse que há grande conforto e facilidade em vê-la como uma parede de névoa, mas que também existe o grave perigo de transformar uma coisa incompreensível em algo sombrio e proibitivo; assim, sua recomendação era manter incompreensíveis as coisas incompreensíveis, em lugar de incluí-las no inventário da primeira atenção.
Após um curto período de sensação de conforto ao ver a parede de névoa, eu tivera de concordar com Dom Juan em que era melhor manter o período de transição como uma abstração incompreensível, mas nessa época eu não conseguia quebrar a fixação de minha consciência. Toda vez que eu era colocado em uma posição de romper a barreira da percepção, via a parede de névoa.
Em certa ocasião, no passado, queixara-me a Dom Juan e Genaro de que, embora eu desejasse vê-la como alguma outra coisa, não conseguia modificar minha posição. Dom Juan comentara que compreendia o fato, porque eu era mórbido e sombrio, e que nós dois éramos muito diferentes a esse respeito. Ele, despreocupado e prático, não venerava o inventário humano. Eu, por outro lado, não desejava lançar meu inventário pela janela e conseqüentemente tornava-me pesado, sinistro e não-prático. Senti-me chocado e entristecido por essa crítica rude, e muito aborrecido. Dom Juan e Genaro riram até que as lágrimas rolaram por suas faces.
Genaro acrescentara que, além de tudo aquilo, eu era vingativo e tinha tendência a engordar. Riram tanto que finalmente senti-me obrigado a juntar-me a eles.
Dom Juan então me dissera que os exercícios de aglutinar outros mundos permitiam ao ponto de aglutinação ganhar experiência em deslocarse. Eu sempre me havia perguntado, entretanto, como conseguir o impulso inicial para desalojar meu ponto de aglutinação de sua posição usual. Quando lhe perguntava isso no passado, ele respondia que, já que o alinhamento é uma força que está envolvida em tudo, a intenção é o que faz o ponto de aglutinação deslocar-se.
Perguntei-lhe novamente a respeito.
— Agora você está em posição de responder a essa pergunta — replicou.
— O domínio da consciência é o que dá impulso ao ponto de aglutinação. Afinal, nós seres humanos somos na realidade bem pouco; somos, em essência, um ponto de aglutinação fixo em certa posição. Nosso inimigo e ao mesmo tempo nosso amigo é nosso diálogo interno, nosso inventário. Seja um guerreiro; desligue seu diálogo interno; faça seu inventário e depois atire-o fora. Os novos videntes fazem apurados inventários e depois riem deles. Sem o inventário, o ponto de aglutinação torna-se livre.
Dom Juan lembrou-me de que havia falado bastante sobre um dos aspectos mais inflexíveis de nosso inventário: nossa idéia de Deus. Esse aspecto, disse, é como uma cola poderosa que prende o ponto de aglutinação à sua posição original. Se eu pretendesse aglutinar outro mundo verdadeiro com outra grande faixa de emanações, tinha de dar um passo obrigatório a fim de afrouxar todos os laços do meu ponto de aglutinação.
— Esse passo é ver o molde do homem. Hoje você deve fazê-lo sem ajuda.
— O que é o molde do homem?
— Ajudei-o a vê-lo muitas vezes. Você sabe do que estou falando. Evitei responder que não sabia do que ele estava falando. Se ele dizia que eu havia visto o molde do homem, devia ser verdade, embora eu não tivesse a menor idéia de como ele era.
Dom Juan sabia o que estava acontecendo em minha mente. Dirigiu-me um sorriso compreensivo e lentamente balançou a cabeça de um lado para outro.
— O molde do homem é um imenso feixe de emanações na grande faixa da vida orgânica — disse. — É chamado de molde do homem porque esse feixe aparece apenas no interior do casulo do homem.
“O molde do homem é a porção das emanações da Águia que os videntes podem ver diretamente sem qualquer perigo para si mesmos.” Houve uma longa pausa antes que ele falasse novamente.
— Romper a barreira da percepção é a última tarefa do domínio da consciência. Para deslocar seu ponto de aglutinação a essa posição você precisa reunir energia suficiente. Faça uma viagem de recuperação. Lembre-se do que fez!
Tentei sem sucesso lembrar o que era o molde do homem. Senti uma frustração excruciante que em breve se transformou em verdadeira raiva. Estava furioso comigo mesmo, com Dom Juan, com todos. Dom Juan não se comoveu com minha fúria. Disse, despreocupadamente, que a zanga era uma reação natural à hesitação do ponto de aglutinação em deslocar-se quando comandado.
— Passará muito tempo antes que você possa aplicar o princípio de que sua ordem é a ordem da Águia — disse. — Essa é a essência do domínio da intenção. Enquanto isso dê agora a ordem de não se impacientar, nem mesmo nos piores momentos de dúvida. Será um processo lento até que essa ordem seja ouvida e obedecida como se fosse uma ordem da Águia.
Disse também que existia uma área incomensurável de consciência entre a posição costumeira do ponto de aglutinação e a posição onde não há mais dúvidas, que é quase o lugar onde a barreira da percepção aparece.
Nessa área incomensurável, os guerreiros caem presa de todos os erros concebíveis. Preveniu-me para ficar atento e não perder a confiança, pois seria inevitavelmente atingido a qualquer momento por um opressivo sentimento de derrota.
— Os novos videntes recomendam um ato muito simples quando a impaciência, o desespero, a raiva ou a tristeza cruzam o seu caminho — continuou. — Recomendam que os guerreiros girem os olhos. Qualquer direção serve. Eu prefiro girar os meus na direção dos ponteiros do relógio.
“O movimento dos olhos faz o ponto de aglutinação deslocar-se por um momento. Nesse movimento, você encontrará alívio. Isso substitui o verdadeiro domínio da intenção.”
Queixei-me de que não havia tempo suficiente para que me falasse mais sobre intenção.
— Isso tudo voltará a você algum dia — assegurou-me. — Uma coisa desencadeará a outra. Uma palavra-chave, e tudo sairá de você como se a porta de um depósito superabarrotado cedesse.
Voltou então a discutir o molde do homem. Disse que vê-lo sozinho, sem a ajuda de ninguém, era um passo importante, porque todos temos certas idéias que devem ser quebradas para que sejamos livres; o vidente que viaja para o desconhecido a fim de ver o incognoscível deve encontrar-se em um estado impecável de ser.
Piscou para mim e disse que encontrar-se em um estado impecável de ser é estar livre de suposições racionais e medos racionais. Acrescentou que tanto minhas suposições quanto meus medos estavam evitando naquele momento que eu realinhasse as emanações que me permitiriam lembrar o molde do homem. Exortou-me a relaxar e a mover meus olhos de modo a fazer meu ponto de aglutinação deslocar-se. Repetiu várias vezes que era realmente importante relembrar ter visto o molde do homem antes que eu o visse novamente, E como ele tinha pouco tempo, não havia espaço para a minha lentidão usual.
Movi meus olhos como ele sugeriu. Quase imediatamente, esqueci meu desconforto e então me veio um súbito clarão de memória: ]lembrei-me que havia, visto o molde do homem. Isso acontecera anos antes, numa ocasião que tinha sido realmente memorável para mim, porque, do ponto de vista de minha formação católica, Dom Juan fizera as afirmações mais sacrílegas que eu jamais ouvira.
Tudo havia começado como uma conversa casual enquanto caminhávamos ao pé das montanhas do deserto de Sonora. Estava explicando-me as implicações do que me vinha fazendo com seus ensinamentos. Havíamos parado para descansar e nos sentamos sobre umas pedras grandes. Dom Juan continuou explicando seu procedimento de ensino, e isso encorajou-me a tentar, pela centésima vez, fazer-lhe um relato de como me sentia a respeito. Era evidente que ele não queria mais ouvir sobre isso. Fez-me mudar de nível de consciência e disse que, se eu desejasse ver o molde do homem, poderia compreender tudo o que estava fazendo e, dessa maneira, economizar anos de labuta para nós dois.
Proporcionou-me uma detalhada explicação do que era o molde do homem. Não falou em termos das emanações da Águia, mas em termos de um padrão de energia que serve para estampar as qualidades de humanidade em uma bolha amorfa de matéria biológica. Pelo menos compreendi dessa maneira, especialmente depois que, mais tarde, descreveu o molde do homem usando uma analogia mecânica. Disse que era como uma matriz gigantesca que imprime os seres humanos continuamente como se chegassem a ela pela correia transportadora de uma linha de produção em massa. Imitou vividamente o processo, juntando as palmas das mãos com grande força, como se a matriz estampasse um ser humano a cada vez que se juntavam as duas metades.
Disse também que cada espécie tem um molde próprio, e cada indivíduo de cada espécie moldada pelo processo mostra características particulares ao seu próprio tipo.
Começou então uma explicação extremamente perturbadora sobre o molde do homem. Disse que os antigos videntes, assim como os místicos de nosso mundo, têm uma coisa em comum — foram capazes de ver o molde do homem, mas não de compreender do que se trata. Os místicos, através dos séculos, proporcionaram-nos relatos comoventes de suas experiências. Mas esses relatos, embora belos, são prejudicados pelo grosseiro e desesperador engano de acreditarem que o molde do homem seja um criador onipotente e onisciente; e assim é a interpretação dos antigos videntes, que chamavam o molde dos seres humanos de espírito amigável, protetor do homem.
Disse que os novos videntes são os únicos que têm a sobriedade de ver o molde do homem e compreender o que é. O que chegaram a perceber é que ele não é um criador, mas o padrão de cada atributo humano sobre o qual podemos pensar e de alguns que não podemos sequer conceber. O molde é nosso Deus porque somos aquilo com que nos estampa, e não porque nos criou do nada e nos fez à sua imagem e semelhança. Dom Juan disse que, em sua opinião, cair de joelhos na presença do molde do homem cheira à arrogância e ao egocentrismo humanos.
Enquanto ouvia a explicação de Dom Juan, fiquei terrivelmente aborrecido. Embora nunca me tivesse considerado um católico praticante, estava chocado com suas implicações blasfemas. Estivera ouvindo-o polidamente, embora desejasse que fizesse uma pausa em sua barreira de julgamentos sacrílegos para me permitir mudar de assunto. Mas continuou insistindo impiedosamente em seu argumento. Finalmente, interrompi-o e disse-lhe que acreditava que Deus existe.
Retorquiu que minha crença era baseada na fé e, como tal, uma convicção de segunda mão que não somava nada; minha crença na existência de Deus era, como a de todas as pessoas, baseada em ouvir dizer e não no ato de ver.
Assegurou-me que, mesmo que eu fosse capaz de ver, estava destinado a cometer o mesmo engano que os místicos cometeram. Todos os que vêem o molde do homem automaticamente presumem que se trata de Deus.
Chamou a experiência mística de visão casual, um acontecimento fortuito que não tem significação, mesmo porque é o resultado de um movimento ao acaso do ponto de aglutinação. Assegurou que os novos videntes são de fato os únicos que podem emitir um julgamento honesto sobre esse assunto, porque eliminaram as visões casuais e são capazes de ver o molde do homem com a freqüência que lhes apetecer.
Viram, portanto, que aquilo que chamamos Deus é um protótipo estático de humanidade destituído de qualquer poder. Pois o molde do homem não pode, sob quaisquer circunstâncias, ajudar-nos intervindo em nosso favor, ou punir nossos erros ou recompensar-nos de qualquer maneira. Somos simplesmente o produto de sua estampa; somos sua impressão. O molde do homem é exatamente o que seu nome nos diz, um padrão, uma fôrma, uma matriz que dá forma a um certo punhado de elementos semelhantes a fibras, que chamamos de homem.
O que disse colocou-me num estado de grande aflição. Mas ele pareceu não se preocupar com minha profunda confusão. Continuou a me alfinetar com o que chamava de crime imperdoável dos videntes casuais, que nos faz concentrar nossa energia insubstituível em algo que não possui o poder de produzir coisa alguma. Quanto mais ele falava, maior o meu aborrecimento.
Quando fiquei tão aborrecido que estava a ponto de gritar com ele, fez-me passar para um estado ainda mais profundo de consciência intensificada. Golpeou-me em meu lado direito, entre o ilíaco e a caixa torácica. Aquele golpe fez-me voar para uma luz radiante, para uma fonte diáfana da mais pacífica e admirável beatitude. Aquela luz era um céu, um oásis no negrume ao meu redor.
De meu ponto de vista subjetivo, vi aquela luz por uma extensão de tempo incomensurável. O esplendor da visão estava além de minha capacidade de expressão; ainda assim, não pude descobrir o que a tomava tão bonita. Veio-me então a idéia de que sua beleza brotava de uma sensação de harmonia, de paz e descanso, de haver chegado, de estar finalmente a salvo. Senti-me respirar em quietude e alívio. Que maravilhosa sensação de plenitude! Sabia, sem a menor sombra de dúvida, que estava frente a frente com Deus, a fonte de tudo. E sabia que Deus me amava. Deus era amor e perdão. A luz banhava-me, e eu me sentia limpo, redimido.
Chorei incontrolavelmente, principalmente por mim mesmo. A visão daquela luz resplendente fez com que eu sentisse que não era digno, que era uma criatura vil.
Subitamente, ouvi a voz de Dom Juan em meu ouvido. Disse que eu tinha de ir além do molde, que o molde devia ser meramente um estágio, uma parada que trazia paz e serenidade temporárias para quem viaja rumo ao desconhecido, mas que era estéril, estático. Como se fosse ao mesmo tempo uma imagem plana refletida num espelho e o próprio espelho, E a imagem seria a imagem do homem.
Fiquei profundamente ressentido com o que Dom Juan estava dizendo; rebelei-me contra suas palavras blasfemas e sacrílegas. Quis afastá-lo, mas não podia quebrar o poder de ligação de minha visão. Estava preso nela. Dom Juan parecia saber exatamente o que eu sentia e o que queria dizer.
— Você não pode descartar o nagual — disse em meu ouvido. — É o nagual que está permitindo que você veja, É a técnica do nagual, o seu poder. O nagual é o guia.
Foi nesse ponto que percebi algo sobre a voz em meu ouvido. Não era a voz de Dom Juan, embora soasse muito parecida. Além disso, a voz estava certa. O instigador daquela visão era o nagual Juan Matus. Sua técnica e seu poder é que me faziam ver Deus. Disse que não era Deus, mas o molde do homem; eu sabia que estava certo. Ainda assim não podia admiti-lo, não por aborreci mento ou teimosia, mas simplesmente por um sentimento de extrema lealdade e amor à divindade que estava diante de mim.
Quando olhei para a luz com toda a paixão de que era capaz, ela pareceu condensar-se e vi um homem. Um homem luminoso que emanava carisma, amor, compreensão, sinceridade e verdade. Um homem que era a soma total de tudo o que é bom.
O fervor que experimentei ao ver aquele homem estava muito além de qualquer coisa que jamais sentira em minha vida. Caí de joelhos. Desejava venerar Deus personificado, mas Dom Juan interveio e golpeou-me na parte superior esquerda de meu peito, próximo à clavícula, fazendo-me perder a visão de Deus.
Fui deixado com uma sensação angustiante, uma mistura de remorso, exaltação, certezas e duvidas. Dom Juan zombou de mim. Chamou-me de carola e descuidado, e disse que eu daria um ótimo padre; agora poderia até mesmo passar por um líder espiritual que tivera a oportunidade de ver Deus. Incentivou-me zombando a começar a pregar e a contar a todos o que tinha visto.
De maneira muito casual, mas aparentemente interessada, fez um comentário que era em parte pergunta e em parte afirmação.
— E o homem? Você não pode esquecer de que Deus é masculino. A enormidade de algo indefinível começou a emergir em mim, enquanto eu entrava em um estado de grande clareza.
— Muito confortável, hem? — acrescentou Dom Juan, sorrindo. — Deus é masculino. Que alívio!
Depois de contar a Dom Juan tudo o que havia lembrado, perguntei-lhe sobre algo que acabara de chamar-me a atenção como terrivelmente estranho. Para ver o molde do homem, eu passara obviamente por um deslocamento de meu ponto de aglutinação. A rememoração dos sentimentos e percepções que tivera então foi tão vívida que deu-me uma sensação de absoluta futilidade. Tudo o que eu tinha feito e sentido naquela época estava sentindo agora. Perguntei-lhe como era possível que, havendo tido uma compreensão tão clara, pudesse tê-la esquecido tão completamente. Era como se nada do que me acontecera houvesse importado, pois eu sempre tinha de começar da estaca zero, independente de quanto pudesse ter avançado no passado.
— Isto é apenas uma impressão emocional — disse. — Um equívoco total. Tudo o que você fez anos atrás está solidamente encerrado em certas emanações não utilizadas. Naquele dia em que o fiz ver o molde do homem, por exemplo, cometi um verdadeiro equívoco. Pensei que se você o visse seria capaz de compreendê-lo. Foi um verdadeiro mal-entendido de minha parte.
Dom Juan explicou que sempre se julgara muito lento para compreender, Nunca tivera qualquer oportunidade de testar sua convicção porque não tinha um ponto de referência. Quando eu apareci e Dom Juan se tornou um instrutor, o que era algo totalmente novo para ele, percebeu que não há maneiras de se apressar a compreensão, e que deslocar o ponto de aglutinação não é suficiente. Ele pensava que isto bastaria, mas logo percebeu que, já que o ponto de aglutinação se desloca normalmente durante os sonhos, algumas vezes a posições extraordinariamente distantes, sempre que passamos por um deslocamento induzido somos todos especialistas em compensar tal situação imediatamente. Reequilibramo-nos constantemente, e a atividade prossegue como se nada nos tivesse acontecido.
Comentou que o valor das conclusões dos novos videntes só se torna claro quando se tenta deslocar o ponto de aglutinação de outra pessoa. Os novos videntes disseram que o importante é o esforço para consolidar a estabilidade do ponto de aglutinação em sua nova posição. Consideravam esse o único procedimento possível do instrutor. E sabiam que se trata de um processo longo, que deve ser conduzido pouco a pouco, a passo de lesma.
Dom Juan disse então que havia usado plantas de poder no início de meu aprendizado, seguindo uma recomendação dos novos videntes. Eles sabiam, por experiência e pela visão, que as plantas de poder afastam o ponto de aglutinação de sua posição normal. O efeito das plantas de poder sobre o ponto de aglutinação é, em princípio, muito semelhante ao dos sonhos; os sonhos fazem-no deslocar-se, mas as plantas de poder conseguem um deslocamento numa escala maior e mais abrangente. O instrutor deve então usar os efeitos desorientadores desta mudança para reforçar a noção de que a percepção do mundo nunca é final.
Lembrei-me então de que havia visto o molde do homem mais cinco vezes ao longo dos anos. A cada vez me tornara menos apaixonado a respeito. Nunca pude ignorar, entretanto, o fato de que sempre via um Deus masculino. No final, deixou de ser Deus para mim e tornou-se o molde do homem, não devido ao que Dom Juan havia dito, mas porque a posição de um Deus masculino se tomara insustentável. Pude então compreender os comentários de Dom Juan a respeito. Não haviam sido blasfêmias ou sacrilégios; ele não os fizera a partir do contexto do mundo cotidiano. Estava correto ao dizer que os novos videntes têm uma vantagem por serem capazes de ver o molde do homem tanto quanto quiserem. Mas o mais importante para mim era que eles tinham a sobriedade de examinar o que viam. Perguntei-lhe por que eu sempre via o molde do homem como masculino. Disse que era porque meu ponto de aglutinação não tinha, então, a estabilidade para permanecer completamente colado à sua nova posição, e deslizava lateralmente na faixa do homem. Era o mesmo caso de ver a barreira da percepção como uma parede de névoa. O que fazia o ponto de aglutinação deslocar-se lateralmente era um desejo ou necessidade quase inevitável de traduzir o incompreensível em termos familiares: uma barreira é uma parede, e o molde do homem só pode ser um homem. Ele achava que, se eu fosse uma mulher, iria ver o molde como uma mulher.
Dom Juan levantou-se e disse que era tempo de darmos um passeio na cidade, que eu deveria ver o molde do homem entre as pessoas. Caminhamos em silêncio para a praça, mas, antes de lá chegarmos, senti um impulso incontrolável de energia e corri rua abaixo para os limites da cidade. Cheguei a uma ponte e, exatamente ali, como se estivesse esperando por mim, vi o molde do homem como uma luz resplendente, cálida e ambarina.
Caí de joelhos, não tanto por fervor, mas como uma reação física ao espanto. A visão do molde do homem era mais surpreendente que nunca. Senti, sem qualquer arrogância, que havia passado por uma enorme mudança desde a primeira vez em que o vira. Contudo, todas as coisas que tinha visto e aprendido me haviam proporcionado apenas uma admiração maior, mais profunda, pelo milagre que me aparecia diante dos olhos. O molde do homem estava, de início, superposto à ponte. Refocalizei então meus olhos e vi que o molde estendia-se para cima e para baixo até o infinito; a ponte não passava de uma fina concha, um tênue desenho superposto ao eterno. E o mesmo se dava com as diminutas figuras de pessoas que se moviam ao meu redor, olhando-me com evidente curiosidade. Mas eu estava fora de seu alcance, embora naquele momento estivesse inteiramente vulnerável. O molde do homem não tinha poder para protegerme ou poupar-me, mas ainda assim eu o amava com uma paixão que não conhecia limites.
Achei que compreendia naquele momento algo que Dom Juan me havia dito repetidamente, que a afeição real não pode ser um investimento. Eu me teria tornado prazerosamente um servidor do molde do homem, não pelo que este poderia dar-me, pois nada tem a dar, mas pela pura afeição que sentia por ele.
Tive a sensação de que algo me puxava para longe, e antes de desaparecer da presença do molde do homem gritei-lhe uma promessa, mas uma grande força me afastou antes que eu pudesse terminar de dizer o que pretendia. Estava subitamente ajoelhado diante da ponte, enquanto um grupo de camponeses olhava para mim e ria.
Dom Juan veio para o meu lado, ajudou-me a ficar de pé e acompanhou-me de volta à casa.
— Há duas maneiras de ver o molde do homem — começou Dom Juan assim que nos sentamos. — Você pode vê-lo como homem, ou pode vê-lo como uma luz. Isso depende do deslocamento do ponto de aglutinação. Se o deslocamento é lateral, o molde é um ser humano; se ocorre na seção central da faixa do homem, o molde é uma luz. O único valor do que fez hoje é que seu ponto de aglutinação se deslocou ao longo da seção central. Disse que a posição em que se vê o molde do homem é muito próxima àquela em que aparecem o corpo sonhador e a barreira da percepção. É por essa razão que os novos videntes recomendam que o molde do homem seja visto e compreendido.
— Tem certeza de que sabe realmente o que é o molde do homem?
— Posso afirmar, Dom Juan, que estou perfeitamente consciente do que é o molde do homem.
— Ouvi-o gritando sandices ao molde do homem quando cheguei à ponte — retrucou ele, com um sorriso malicioso.
Disse-lhe que me sentira como um servidor destituído de valor, venerando um mestre destituído de valor, embora tivesse sido levado por pura afeição a prometer amor sem fim.
Dom Juan achou tudo aquilo hilariante e riu até engasgar-se.
— A promessa feita por um servidor sem valor a um mestre sem valor naturalmente não tem valor — disse, engasgando-se novamente de riso. Não tive vontade de defender minha posição. Minha afeição peio molde do homem era oferecida livremente, sem esperar recompensa. Não importava se ela não tinha valor algum.
(O Fogo Interior, Carlos Castañeda)