“Dom Juan interrompeu sua explicação sobre o domínio da consciência por vários meses, depois do meu confronto com os aliados. Um dia, recomeçou-a. Um evento estranho desencadeou tudo.
Dom Juan estava no norte do México. Era o final da tarde. Eu havia acabado de chegar à casa que ele mantinha ali; logo fez-me entrar em estado de consciência intensificada. E instantaneamente lembrei-me que Dom Juan sempre voltava a Sonora como um recurso de renovação. Ele havia explicado que um nagual, sendo um líder com enormes responsabilidades, precisa ter um ponto físico de referência, um lugar em que ocorra uma confluência conveniente de energias. O deserto de Sonora era um lugar assim.
Ao passar para a consciência intensificada, notara que havia outra pessoa escondendo-se na semi-obscuridade do interior da casa. Perguntei a Dom Juan se Genaro estava com ele. Respondeu que estava só; o que eu tinha observado era um de seus aliados, aquele que guardava a casa.
Dom Juan fez então um gesto estranho. Contorceu o rosto como se estivesse surpreso ou terrificado. E, instantaneamente, a forma assustadora de um estranho homem apareceu na porta do aposento onde estávamos. A presença daquele ser amedrontou-me tanto que, realmente, senti vertigem. E antes que pudesse recuperar-me do susto, o homem saltou sobre mim com uma ferocidade espantosa. Quando agarrou meus antebraços, senti uma pancada quase igual à descarga de uma corrente elétrica.
Eu estava sem voz, tomado por um terror que Não conseguia dissipar.
Dom Juan sorria para mim. Resmunguei e grunhi, tentando dar voz a um pedido de socorro, enquanto sentia outra pancada mais forte.
O homem agarrou-me com mais força ainda e tentou jogar-me para trás, para o chão. Dom Juan, sem pressa na voz, aconselhou que eu me recompusesse e não lutasse com meu medo, mas me arranjasse com ele.
— Fique assustado sem ficar aterrorizado — disse ele. Dom Juan veio para o meu lado e, sem intervir em minha luta, sussurrou-me ao ouvido que eu deveria colocar toda a concentração no ponto central de meu corpo. Ao longo dos anos, ele vinha insistindo em que eu medisse meu corpo até o centésimo de uma polegada e estabelecesse seu ponto central, tanto no comprimento quanto na largura. Sempre afirmara que tal ponto é o verdadeiro centro de energia em todos nós.
Assim que focalizei minha atenção nesse ponto central, o homem soltou-me. Naquele instante, percebi que o que imaginara fosse um ser humano era algo que apenas se parecia com um. No momento em que perdeu sua forma humana para mim, o aliado se transformou numa bolha amorfa de luz opaca. Afastou-se. Fui atrás, movido por uma grande força que me fazia seguir aquela luz opaca.
Dom Juan me deteve- Suavemente, levou-me à entrada de sua casa e fez-me sentar sobre um rústico caixote que usava como banco. Eu estava muito perturbado pela experiência, porém mais ainda pelo fato de que meu medo paralisante tivesse desaparecido tão rápida e completamente.
Comentei sobre minha abrupta mudança de estado. Dom Juan disse que não havia nada de estranho com respeito a ela, e que o medo deixa de existir assim que o brilho da consciência se move além de certo umbral, dentro do casulo humano.
Começou então sua explicação, Sumariamente, delineou as verdades sobre a consciência que havia discutido: que não existe mundo objetivo, mas apenas um universo de campos de energia que os videntes chamam de emanações da Águia. Que os seres humanos são feitos das emanações da Águia e são essencialmente bolhas de energia luminescente; cada um de nós está envolto em um casulo que aprisiona uma pequena porção dessas emanações. Que a consciência é adquirida pela pressão constante que as emanações externas aos nossos casulos, chamados emanações livres, exercem sobre as que se encontram dentro dos mesmos. Essa consciência dá origem à percepção, o que acontece quando as emanações no interior dos nossos casulos alinham se com as emanações livres correspondentes.
— A verdade seguinte é que a percepção tem lugar — continuou — porque existe em cada um de nós um agente chamado ponto de aglutinação que seleciona as emanações internas e externas para alinhamento. O alinhamento particular que percebemos como mundo é produto da posição específica em que nosso ponto de aglutinação está localizado em nosso casulo.
Repetiu isso várias vezes, dando-me tempo para entender. Disse, então, que para corroborar as verdades sobre a consciência, eu necessitava de energia.
— Expliquei a você — continuou — que lidar com pequenos tiranos ajuda os videntes a realizarem uma manobra sofisticada: essa manobra destina-se a mover seus pontos de aglutinação.
Disse que o fato de eu ter percebido um aliado significava que havia movido meu ponto de aglutinação de sua posição costumeira. Em outras palavras, meu brilho da consciência movera-se além de certo umbral, apagando também meu medo. E tudo isso havia acontecido porque eu tinha energia suplementar suficiente.
Mais tarde, naquela noite, depois que retornamos de uma viagem para as montanhas circundantes, parte de seus ensinamentos para o lado direito, Dom Juan fez-me passar novamente para a consciência intensificada e continuou então sua explicação. Disse-me que, para discutir a natureza do ponto de aglutinação, teria que começar com uma discussão sobre a primeira atenção.
Explicou que os novos videntes examinavam as maneiras imperceptíveis pelas quais funciona a primeira atenção e, ao tentarem explicá-las para os outros, arranjaram uma ordem para as verdades sobre a consciência.
Assegurou-me que nem todo vidente é dado a explicações. Por exemplo, seu benfeitor, o nagual Julian, não poderia importar-se menos com elas. Mas o benfeitor do nagual Julian, o nagual Elias, a quem Dom Juan teve a sorte de conhecer, se importava. Entre as explicações detalhadas e longas do nagual Elias, as resumidas do nagual Julian e seu próprio ver pessoal, Dom Juan chegou a compreender e a comprovar essas verdades.
Dom Juan explicou que, para nossa primeira atenção colocar em foco o mundo que percebemos, ela deve enfatizar certas emanações selecionadas na estreita faixa de emanações em que está localizada a consciência do homem. As emanações descartadas continuam dentro de nosso alcance, mas permanecem inativas, ignoradas por nós pela duração de nossas vidas. Os novos videntes chamam as emanações enfatizadas do lado direito, a consciência normal, o tonal, este mundo, o conhecido, a primeira atenção. O homem médio chama-as de realidade, racionalidade, senso comum.
As emanações enfatizadas compõem uma larga porção da faixa de consciência do homem, mas uma parte muito pequena do espectro total de emanações presente no interior do casulo humano. As emanações negligenciadas na faixa do homem são consideradas como uma espécie de preâmbulo ao desconhecido, e o próprio desconhecido consiste em todas as emanações que não são parte da faixa humana e que nunca são enfatizadas,
Os videntes chamam-nas de consciência do lado esquerdo, nagual, o outro mundo, o desconhecido, a segunda atenção.
— Esse processo de enfatizar certas emanações — continuou Dom Juan. — foi descoberto e praticado pelos antigos videntes. Eles notaram que um homem nagual ou uma mulher nagual, pelo fato de possuir força extra, pode afastar a ênfase das emanações usuais e fazê-la passar para as emanações mais próximas. Esse empurrão é conhecido como o golpe do nagual.
Dom Juan disse que a mudança era utilizada pelos antigos videntes com finalidades práticas, para manter seus aprendizes atados. Com esse golpe, faziam com que os aprendizes entrassem em um estado de consciência intensificada, extremamente aguda e impressionável; enquanto estavam irremediavelmente maleáveis, os antigos videntes ensinavam-lhes técnicas aberrantes que transformavam os aprendizes em homens sinistros, exatamente como seus mestres.
Os novos videntes empregam a mesma técnica, mas, ao invés de usá-la para propósitos sórdidos, utilizavam-na para guiar seus aprendizes no conhecimento das possibilidades do homem. Dom Juan explicou que o golpe do nagual tem de ser desferido num ponto preciso, o ponto de aglutinação, que varia ligeiramente de pessoa para pessoa. Além disso, o golpe deve ser desferido por um nagual que vê.
Assegurou-me que é igualmente inútil possuir a força de um nagual e não ver, ou ver e não possuir a força de um nagual. Em qualquer dos dois casos, os resultados são apenas golpes. Um vidente poderia acertar o ponto preciso uma vez após outra, sem a força para mover a consciência, e um nagual não vidente não seria capaz de acertar o ponto preciso.
Disse também que os antigos videntes descobriram que o ponto de aglutinação não está no corpo físico, mas no invólucro luminoso, no próprio casulo. O nagual identifica esse ponto por sua intensa luminosidade, e o empurra, mais do que o golpeia. A força do empurrão cria uma mossa no casulo e é sentida como um golpe na omoplata direita, um golpe que retira todo o ar dos pulmões.
— Existem tipos diferentes de mossas?
— Existem apenas dois. Um é uma concavidade, o outro é uma fenda; cada qual tem um efeito distinto. A concavidade é uma marca temporária e produz uma mudança temporária, mas a fenda é uma marca profunda e permanente no casulo, produzindo uma mudança permanente.
Explicou que geralmente um casulo endurecido pela auto-reflexão não é afetado de modo algum pelo golpe do nagual. Às vezes, entretanto, o casulo do homem é muito maleável e a menor força cria uma mossa, variando em tamanho, desde uma pequena depressão a uma que tenha um terço do tamanho do casulo inteiro; ou cria uma fenda que pode atravessar a largura da casca ovóide, ou ao longo de seu comprimento, fazendo o casulo parecer como se estivesse curvado sobre si mesmo.
Algumas conchas luminosas, após terem sido deformadas, voltam instantaneamente à sua forma original. Outras permanecem deformadas por horas ou mesmo dias de cada vez, mas retrocedem por si mesmas. Outras ainda recebem uma mossa firme e resistente, que requer outro golpe do nagual sobre a área fronteiriça para restaurar a forma original do casulo luminoso. E algumas poucas nunca perdem sua mossa depois que a recebem. Por mais que recebam golpes de um nagual, nunca revertem às suas formas ovóides.
Dom Juan disse ainda que a mossa age sobre a primeira atenção deslocando o brilho da consciência. A mossa faz pressão sobre as emanações do interior da concha luminosa, e os videntes testemunham como a primeira atenção muda sua ênfase sob a força de tal pressão. A mossa, deslocando as emanações da Águia no interior do casulo, faz com que o brilho da consciência incida sobre emanações de áreas normalmente inacessíveis à primeira atenção.
Perguntei-lhe se o brilho da consciência só é visto na superfície do casulo luminoso. Não me respondeu imediatamente. Pareceu mergulhar em seus pensamentos. Após talvez dez minutos, respondeu à minha pergunta; disse que normalmente o brilho da consciência é visto na superfície do casulo de todos os seres conscientes. Depois que o homem desenvolve a atenção, entretanto, o brilho da consciência adquire profundidade. Em outras palavras, é transmitido da superfície do casulo a um certo número de emanações no interior do mesmo.
— Os antigos videntes sabiam o que estavam fazendo quando manipulavam a consciência — continuou. — Perceberam que, ao criar uma mossa no casulo do homem, podiam forçar o brilho da consciência, que já está incidindo sobre as emanações no interior do casulo, a atingir outras emanações vizinhas.
— Você faz tudo isso parecer uma questão física. Como podem ser feitas mossas em algo que é apenas um brilho?
— De alguma maneira inexplicável, trata-se de um brilho que cria uma mossa em outro brilho. O seu problema é que você continua agarrado ao inventário da razão. A razão não lida com o homem como energia. A razão lida com instrumentos que criam energia, mas nunca ocorreu seriamente à razão que somos mais do que instrumentos: somos organismos que criam energia. Somos uma bolha de energia. Assim, não é um disparate que uma bolha de energia possa provocar uma mossa em outra bolha de energia.
Disse que o brilho da consciência criado pela mossa poderia ser, na verdade, chamado de atenção temporariamente intensificada, porque ele enfatiza emanações que estão tão próximas das habituais que a mudança é mínima. Ainda assim, produz um aumento da capacidade de compreender e de se concentrar e, acima de tudo, um aumento da capacidade de esquecer. Os videntes sabiam exatamente como usar essa mudança na escala de qualidade. Eles viam que apenas as emanações que cercam as que usamos no cotidiano subitamente ficavam brilhantes após o golpe do nagual. As mais distantes permaneciam intocadas, o que significava para eles que, enquanto se encontrassem num estado de atenção intensificada, os seres humanos podiam trabalhar como se estivessem no mundo da vida cotidiana.
A presença de um homem nagual e uma mulher nagual se tornou fundamental para eles, porque aquele estado só dura o tempo que a depressão permanece. Depois disso, as experiências são imediatamente esquecidas.
— Por que é necessário esquecer?
— Porque as emanações que provocam o aumento da clareza deixam de ser enfatizadas depois que os guerreiros não estão mais com a consciência intensificada. Sem essa ênfase, aquilo que experimentem ou testemunhem desaparece.
Dom Juan disse que uma das tarefas que os novos videntes haviam criado para seus alunos era forçá-los a recordar, ou seja, reenfatizar sozinhos, depois, as emanações usadas durante os estados de consciência intensificada. Lembrou-me que Genaro estava sempre recomendando que eu aprendesse a escrever com a ponta do dedo, em lugar do lápis, para não acumular anotações. Dom Juan explicou que o que Genaro queria realmente dizer era que enquanto eu me encontrasse em estado de consciência intensificada, deveria lançar mão de algumas emanações não usadas, para armazenar os diálogos e experiências, e algum dia lembrar-me de tudo reenfatizando as emanações que haviam sido usadas.
Continuou explicando que um estado de consciência intensificada é visto não apenas como um brilho que aparece numa região mais profunda da forma ovóide dos seres humanos, mas também como um brilho mais intenso na superfície do casulo. Embora não seja nada em comparação com o brilho produzido em estados de consciência total, visto como uma explosão de incandescência no ovo luminoso inteiro. É uma explosão de luz de tal magnitude que os limites da concha ficam difusos e as emanações do interior estendem-se além de qualquer coisa imaginável.
— São casos especiais, Dom Juan?
— É claro. Acontecem apenas com videntes. Nenhum outro homem ou nenhuma outra criatura vivente se ilumina dessa maneira. Videntes que atingem deliberadamente a consciência total são uma visão para se guardar.
Esse é o momento em que queimam de dentro para fora, O fogo do interior os consome. Em consciência total, fundem-se com as emanações livres, e deslizam para a eternidade.
Após alguns dias em Sonora, levei Dom Juan de volta à cidade do sul do México onde ele e seu grupo de guerreiros viviam.
O dia seguinte foi quente e nebuloso. Sentia-me preguiçoso e um tanto aborrecido. No meio da tarde, havia uma quietude muito desagradável naquela cidade. Dom Juan e eu estávamos sentados nas poltronas confortáveis no aposenta grande. Disse-lhe que a vida no México rural não era o que mais me agradava. Não gostava da sensação que tinha de que o silêncio daquela cidade era forçado. O único ruído que conseguia ouvir era o som de vozes de crianças que gritavam a distância. Nunca foi capaz de descobrir se estavam brincando ou gritando de dor.
— Quando você está aqui, está sempre num estado de consciência intensificada. Isso faz uma grande diferença. Entretanto, deveria acostumarse a viver numa cidade como esta. Algum dia irá viver numa delas.
— Por que deveria viver em uma cidade como esta, Dom Juan?
— Eu lhe expliquei que os novos videntes pretendem ser livres, E a liberdade tem as implicações mais devastadoras. Entre elas, está a implicação de que os guerreiros devem procurar deliberadamente a mudança. Já a sua predileção é viver da maneira como vive. Você estimula sua razão, percorrendo seu inventário e comparando-o com os inventários de seus amigos. Essas manobras deixam-lhe muito pouco tempo para examinar a si mesmo e a seu destino. Terá de abandonar tudo isso. Da mesma maneira, se tudo o que conhecesse fosse a calma mortal dessa cidade, você teria que procurar, mais cedo ou mais tarde, o outro lado da moeda.
— É isso que está fazendo aqui, Dom Juan?
— Nosso caso é um pouquinho diferente, porque estamos no final de nosso caminho. Não estamos procurando coisa alguma. O que todos nós fazemos aqui é algo que só um guerreiro pode compreender. Passamos dia após dia sem fazer coisa alguma. Estamos esperando, não me cansarei de repetir isso: sabemos que estamos esperando e sabemos pelo que estamos esperando. Estamos à espera da liberdade! E acrescentou com um sorriso:
— Agora que você sabe disso vamos voltar à nossa discussão sobre consciência.
Geralmente, quando estávamos naquele aposento, nunca éramos interrompidos por ninguém, e Dom Juan sempre decidia sobre a extensão de nossas discussões. Mas dessa vez houve uma pancada polida na porta, e Genaro entrou e se sentou. Não via Genaro desde o dia em que corrêramos para fora de sua casa com grande pressa. Abracei-o.
— Genaro tem algo a contar-lhe — disse Dom Juan. — Eu lhe disse que ele é o mestre da consciência. Agora posso dizer-lhe o que tudo isso significa. Ele pode fazer o ponto de aglutinação se deslocar mais para o fundo do ovo luminoso depois de ter sido tirado de sua posição pelo golpe do nagual.
Explicou que Genaro havia empurrado meu ponto de aglutinação inúmeras vezes depois de eu atingir a consciência intensificada. No dia em que tínhamos ido à gigantesca rocha achatada para conversar, Genaro fez com que meu ponto de aglutinação se movesse dramaticamente para o lado esquerdo — tão dramaticamente, com efeito, que havia sido um pouco perigoso.
Dom Juan parou de falar e pareceu pronto a passar a palavra a Genaro. Fez um sinal com a cabeça, como que o incitando a dizer alguma coisa.
Genaro se levantou e veio para o meu lado.
— A chama é muito importante — disse, suavemente. — Lembra-se do dia em que fiz você olhar para o reflexo do sol em um pedaço de quartzo, quando estávamos sentados sobre aquela grande rocha achatada?
Quando Genaro mencionou o fato, lembrei-me. Naquele dia, logo depois que Dom Juan parou de falar, Genaro apontou para a refração da luz que atravessava um pedaço de quartzo polido, que ele tirara do seu bolso e colocara sobre a rocha. O brilho do quartzo prendeu imediatamente minha atenção. Quando me dei conta, estava agachado sobre a rocha com Dom Juan parado a meu lado, com um olhar preocupado no rosto.
Estava a ponto de contar a Genaro que me lembrava, quando ele começou a falar. Colocou a boca perto de meu ouvido, e apontou para um dos lampiões de querosene que havia no aposento.
— Olhe para a chama. Não há calor nela. Ê pura chama. A pura chama pode levá-lo às profundezas do desconhecido.
Enquanto falava, comecei a sentir uma pressão estranha; era um peso físico. Meus ouvidos estavam zumbindo, meus olhos lacrimejavam a ponto de eu mal poder distinguir a forma da mobília. Minha visão parecia estar totalmente fora de foco. Embora meus olhos estivessem abertos, não podia ver a luz intensa dos lampiões. Tudo ao meu redor estava escuro. Havia faixas de fosforescência verde-amarelada que iluminavam nuvens escuras em movimento. Então, tão abruptamente como havia desaparecido, minha visão retornou.
Não consegui descobrir onde me encontrava. Parecia flutuar como um balão. Estava sozinho. Senti uma pontada de terror, e minha razão apressou-se a construir uma explicação que fizesse sentido para mim naquele momento: Genaro me hipnotizara, usando a chama do lampião de querosene. Sentia-me quase satisfeito. Flutuei silenciosamente, tentando não me preocupar; pensei que uma maneira de evitar as preocupações seria concentrar-me nos estágios pelos quais teria de passar para acordar.
A primeira coisa que notei foi que eu não era eu mesmo. Não podia realmente olhar para nada, porque não tinha nada com que olhar. Quando tentei examinar meu corpo, percebi que só conseguia estar consciente, e ainda assim era como se estivesse olhando para o espaço infinito. Havia nuvens portentosas de luz brilhante e massas de negrume; estavam todas em movimento. Vi claramente uma onda de brilho ambarino que vinha em minha direção, como uma onda oceânica enorme e lenta. Soube então que era como uma bóia flutuando no espaço e que a onda iria engolfar-me e me carregar. Aceitei o fato como inevitável. Mas pouco antes que me atingisse, algo totalmente inesperado aconteceu: um vento soprou-me para fora da trajetória da onda.
A força daquele vento levou-me com tremenda velocidade. Passei através de um imenso túnel de intensas luzes coloridas. Minha visão se embaçou completamente, e então senti que estava acordando, que estivera sonhando, um sonho hipnótico provocado por Genaro. No instante seguinte retornava ao aposento, com Dom Juan e Genaro.
Dormi a maior parte do dia que se seguiu. No final da tarde, Dom Juan e eu sentamo-nos novamente para conversar. Genaro estivera comigo antes, mas recusou-se a comentar sobre minha experiência.
— Genaro empurrou novamente seu ponto de aglutinação na noite passada — disse Dom Juan. — Mas talvez o empurrão tenha sido forte demais.
Ansiosamente, contei a Dom Juan o conteúdo de minha visão. Ele sorriu, obviamente enfadado.
— Seu ponto de aglutinação se afastou de sua posição normal, e isso fez com que você percebesse emanações que normalmente não são percebidas. Parece uma bobagem, não é? Entretanto, trata-se de uma realização suprema, que os novos videntes lutam para elucidar.
Explicou que os seres humanos escolhem sempre as mesmas emanações para perceber, por duas razões. Primeira e mais importante: porque fomos ensinados que essas emanações são perceptíveis; a segunda; porque nossos pontos de aglutinação selecionam e preparam essas emanações para serem usadas.
— Todo ser vivo tem um ponto de aglutinação que seleciona emanações para enfatizar. Os videntes podem ver se outros seres conscientes têm a mesma visão do mundo. Vendo se as emanações que seus pontos de aglutinação selecionaram são as mesmas.
Afirmou que uma das conquistas mais importantes para os novos videntes foi descobrir que a área onde esse ponto está localizado no casulo de todas as criaturas vivas não é uma característica permanente, mas está estabelecida por hábito naquela região específica. Daí a tremenda importância que os novos videntes atribuem a novas ações, novas práticas. Desejam desesperadamente chegar a novos usos, novos hábitos.
— O golpe do nagual é de grande importância — continuou — porque faz com que aquele ponto se desloque. Altera sua localização. Às vezes chega mesmo a criar uma massa permanente. O ponto de aglutinação é totalmente desalojado, e a consciência muda dramaticamente. Mas o que é ainda mais importante é a compreensão apropriada das verdades sobre a consciência, de modo a perceber que aquele ponto pode ser deslocado a partir do interior. A infeliz verdade é que os seres humanos sempre perdem por omissão. Simplesmente não conhecem suas possibilidades.
— Como se pode realizar esta mudança a partir do interior?
— Os novos videntes dizem que a compreensão é a técnica, Dizem que, antes de tudo, é preciso ficar consciente de que o mundo que percebemos é o resultado da localização dos nossos pontos de aglutinação em uma área específica do casulo. Depois que isto é compreendido, o ponto de aglutinação pode se mover quase por força da vontade, como conseqüência de novos hábitos.
Não entendi realmente o que ele estava chamando de hábitos. Pedi que esclarecesse esse ponto.
— O ponto de aglutinação do homem aparece em uma área definida do casulo porque a Águia assim ordena. Mas a área precisa é determinada pelo hábito, pelos atos repetitivos. Primeiro aprendemos que ele pode ser localizado ali, e então nós mesmos ordenamos que fique naquele lugar. Nossa ordem se torna a ordem da Águia, e o ponto se fixa naquela posição. Reflita sobre isto com muito cuidado; nossa ordem se torna a ordem da Águia. Os antigos videntes pagaram muito caro por essa descoberta. Mais tarde, voltaremos a esse assunto.
Reafirmou mais uma vez que os antigos videntes se concentraram exclusivamente no desenvolvimento de milhares das mais complexas técnicas de feitiçaria. Acrescentou que o que nunca perceberam foi que seus métodos intricados, por mais bizarros que fossem, só tinham valor como meios de quebrar a fixação de seus pontos de aglutinação e fazer com que se deslocassem. Pedi que explicasse o que havia dito.
— Já disse que a feitiçaria é algo como entrar em uma rua sem saída. O que queria mostrar era que as práticas de feitiçaria não possuem valor intrínseco, O valor é indireto, pois sua função real é fazer com que o ponto de aglutinação mude, levando a primeira atenção a relaxar seu controle sobre aquele ponto.
“Os novos videntes perceberam o verdadeiro papel que aquelas práticas de feitiçaria desempenhavam, e decidiram ir diretamente ao processo de fazer seus postos de aglutinação se deslocarem, evitando todos os outros rituais e encantamentos sem sentido. Entretanto, os rituais e encantamentos são realmente necessários em determinada época na vida de cada guerreiro. Pessoalmente, iniciei-o em todos os tipos de procedimentos de feitiçaria, mas apenas com a finalidade de atrair sua primeira atenção para além do poder de auto-absorção, que mantém seu ponto de aglutinação rigidamente fixado.”
Acrescentou que a permanência obsessiva da primeira atenção na autoabsorção ou razão é uma força de coesão poderosa, e que o comportamento ritual, por ser repetitivo, obriga a primeira atenção a liberar certa quantidade de energia do ato de cuidar do inventário — e, em conseqüência disso, o ponto de aglutinação perde sua rigidez.
— O que acontece às pessoas cujo ponto de aglutinação perde a rigidez?
— Se não são guerreiros, pensam que estão perdendo a razão — disse ele sorrindo. —- Exatamente como você pensou que estava ficando louco em certa ocasião. Quando são guerreiros, sabem que ficarão loucos, mas esperam pacientemente. Veja você, ser saudável e lúcido significa que o ponto de aglutinação é imóvel. Quando ele muda, o fato significa, literalmente, que a pessoa está perturbada.
Disse que há duas opções abertas aos guerreiros cujo ponto de aglutinação se desloca. Uma é considerar que estão doentes e proceder de maneira incongruente, reagindo emocionalmente aos mundos estranhos que suas mudanças forçam-nos a testemunhar; a outra é permanecer impassíveis, intocados, sabendo que o ponto de aglutinação sempre volta à sua posição original.
— E se o ponto de aglutinação não retornar?
— Então essas pessoas estão perdidas. Ou ficam incuravelmente loucas, porque seus pontos de aglutinação jamais poderiam aglutinar o mundo como o conhecemos, ou se tornam videntes impecáveis que começaram seu movimento em direção ao desconhecido.
— O que determina se é um caso ou outro?
— Energia! Impecabilidade! Guerreiros impecáveis não perdem a linha. Permanecem intocáveis. Disse-lhe muitas vezes que os guerreiros impecáveis podem ver mundos aterrorizantes e, entretanto, no momento seguinte contar uma piada, rindo com amigos ou estranhos.
Falei então a Dom Juan o que já havia dito muitas vezes antes, que o que me fizera pensar que estava doente foi uma série de perturbadoras experiências sensoriais pelas quais tinha passado como efeitos retardados da ingestão de plantas alucinógenas. Passei por estados de total discordância de espaço e tempo, lapsos muito incômodos de concentração mental, visões ou alucinações de pessoas ou lugares que enxergava como se existissem realmente. Não pude deixar de pensar que estava perdendo a razão.
— Por todos os critérios ordinários, você estava realmente perdendo a razão — disse ele — mas, na visão dos videntes, se você a perdesse, não teria perdido muito. A mente, para um vidente, não é nada mais que o reflexo do inventário do homem. Se você perde esse reflexo, mas não perde seus alicerces, vive realmente uma vida infinitamente mais forte do que se o conservasse.
Observou que minha falha era minha reação emocional, que me impedia de perceber que a estranheza de minhas experiências sensoriais era determinada pela profundidade a que meu ponto de aglutinação havia sido deslocado na faixa das emanações humanas.
Disse-lhe que eu não podia compreender o que ele estava explicando porque a configuração que ele chamava de faixa das emanações humanas era algo incompreensível para mim. Eu a imaginava como uma fita estendida sobre a superfície de uma bola.
Dom Juan disse que chamá-la de faixa era enganoso, e que iria usar uma analogia para ilustrar o que tinha em mente. Explicou que a forma luminosa do homem é como uma bola de queijo branco com um espesso disco de queijo mais escuro no interior. Olhou para mim e deu uma risadinha. Sabia que eu não gostava de queijo.
Traçou um diagrama em um pequeno quadro-negro. Desenhou uma forma ovóide e dividiu-a em quatro seções longitudinais, dizendo que iria apagar imediatamente as linhas divisórias porque as havia desenhado apenas para dar-me uma idéia de onde a faixa estava localizada no casulo do homem. Traçou então uma faixa larga sobre a linha que separava a primeira e a segunda seções, e apagou as linhas divisórias. Explicou que a faixa era como um disco de queijo amarelo inserido na bola de queijo branco.
— Agora, se essa bola de queijo branco fosse transparente, você teria uma réplica perfeita do casulo do homem. O queijo amarelo vai até o fundo da bola de queijo branco. É um disco que vai da superfície de um lado à superfície do outro. O ponto de aglutinação do homem é localizado acima, a três quartos do caminho para o alto do ovo, na superfície do casulo. Quando um nagual faz pressão sobre esse ponto de intensa luminosidade, o ponto se move para o interior do disco de queijo amarelo. A consciência intensificada aparece quando o brilho intenso do ponto de aglutinação ilumina emanações adormecidas no interior do disco de queijo amarelo. Ver o brilho do ponto de aglutinação movendo-se para dentro daquele disco dá a sensação de que ele está se deslocando para a esquerda na superfície do casulo.
Repetiu sua analogia por três ou quatro vezes, mas não a compreendi, e teve de explicá-la novamente. Disse que a transparência do ovo luminoso cria a impressão de um movimento para a esquerda, quando na realidade qualquer movimento do ponto de aglutinação se dá no sentido da profundidade, para o centro do ovo luminoso ao longo da espessura da faixa humana.
Observei que o que ele dizia soava como se os videntes estivessem usando seus olhos quando vêem o movimento do ponto de aglutinação.
— O homem não é o incognoscível. A luminosidade do homem pode ser vista quase como se estivéssemos usando apenas os olhos. Explicou ainda que os antigos videntes haviam visto o movimento do ponto de aglutinação, mas que nunca lhes ocorreu que se tratava de um movimento em profundidade; ao invés disso, seguiram sua visão e cunharam a frase “mudança para a esquerda”, que os novos videntes ainda usavam, embora soubessem que não era correto.
Disse também que no curso de minha atividade com ele havia feito meu ponto de aglutinação mover-se inúmeras vezes, como era o caso naquele exato momento. Uma vez que a mudança do ponto de aglutinação se dava sempre em profundidade, eu nunca tinha perdido meu sentido de identidade, embora estivesse sempre usando emanações que nunca usara antes.
— Quando o nagual empurra este ponto, ele se move para qualquer lugar ao longo da faixa humana, mas isso absolutamente não importa, porque onde quer que vá parar, será sempre em terreno virgem.
“O grande teste que os novos videntes desenvolveram para os seus aprendizes de guerreiros é reconstituir a trajetória seguida por seus pontos de aglutinação sobre a influência do nagual. Ao completar-se, esta reconstituição é chamada de reconquista da totalidade de si mesmo.”
Continuou dizendo que os novos videntes afirmam que, no curso de nosso crescimento, depois que o brilho da consciência se focaliza sobre a faixa de emanações humanas e seleciona algumas delas para ênfase, entra em um círculo vicioso. Quanto mais enfatiza certas emanações, mais estável fica o ponto de aglutinação. Isso equivale a afirmar que a nossa ordem se torna a ordem da Águia. Não é preciso dizer que, quando nossa consciência se desenvolve em primeira atenção, a ordem é tão forte que quebrar esse círculo e fazer o ponto de aglutinação se mover é um verdadeiro triunfo.
Dom Juan disse que o ponto de aglutinação também é responsável por fazer a primeira atenção perceber em termos de aglomerados. Um exemplo de um aglomerado de emanações que recebem ênfase ao mesmo tempo é o corpo humano tal como nós o percebemos. Outra parte de nosso ser total, nosso casulo luminoso, nunca recebe ênfase e é relegado ao esquecimento, pois o efeito do ponto de aglutinação não é apenas fazer-nos perceber certos aglomerados de emanações, mas também fazer-nos ignorar outras emanações.
Quando insistir em pedir uma explicação para os aglomerados ele replicou que o ponto de aglutinação irradia um brilho que reúne feixes de emanações aprisionadas. Esses feixes então se alinham com as emanações livres. Os aglomerados se formam mesmo quando os videntes lidam com emanações que nunca são usadas. Sempre que são enfatizadas, podemos percebê-las exata-mente como percebemos os aglomerados da primeira atenção.
— Um dos maiores momentos que os novos videntes tiveram — continuou — foi quando descobriram que o desconhecido é simplesmente as emanações descartadas pela primeira atenção. É vasto, mas a aglomeração ainda pode ser feita. Já o incognoscível, por sua vez, é uma eternidade onde nosso ponto de aglutinação não tem condição de aglomerar alguma.
Explicou que o ponto de aglutinação é como um magneto luminoso que escolhe emanações e as agrupa sempre que se move dentro dos limites da faixa de emanações do homem. Essa descoberta foi a glória dos novos videntes, pois lançou nova luz sobre o desconhecido. Os novos videntes perceberam que algumas das visões obsessivas dos videntes, aquelas que eram quase inconcebíveis, coincidiam com a mudança do ponto de aglutinação para a região da faixa do homem que é diametralmente oposta àquela onde ele está ordinariamente localizado.
— Eram visões do lado escuro do homem — assegurou.
— Por que você chama de o lado escuro do homem?
— Porque é sombrio e ameaçador — disse. — Não é apenas o desconhecido, mas o que não se quer conhecer.
— E quanto às emanações que estão dentro do casulo, mas fora dos limites da faixa do homem? Podem ser percebidas?
— Sim, mas de maneiras indescritíveis. Não são o desconhecido humano, como é o caso das emanações não utilizadas na faixa do homem, mas o desconhecido quase incomensurável, onde não há nenhum traço. É de fato uma área de uma vastidão tão gigantesca que o melhor dos videntes dificilmente conseguiria descrevê-la.
Insisti, mais uma vez, que me parecia que o mistério está obviamente dentro de nós.
— O mistério está fora de nós. Dentro de nós há apenas emanações tentando romper o casulo. E esse fato nos desvia da verdade de um modo ou de outro, sejamos homens comuns ou guerreiros. Apenas os novos videntes superaram esse ponto. Eles lutam para ver. E por meio das mudanças de seus pontos de aglutinação conseguem sentir que o mistério é perceber. Não tanto o que percebemos, mas o que nos faz perceber.
“Já lhe disse que os novos videntes acreditam que os nossos sentidos são capazes de detectar qualquer coisa. Acreditam nisso porque vêem que a posição do ponto de aglutinação é o que dita o que nossos sentidos percebem. Se o ponto de aglutinação alinha emanações no interior do casulo em uma posição diferente da normal, os sentidos humanos percebem de maneiras inconcebíveis.”
(O Fogo Interior, Carlos Castañeda)
Na época que li esse livro de Castañeda, ainda não trabalhava tanto com o conceito de – Algoritmo. Relendo hoje, creio que essas alterações do Ponto de Aglutinação podem, hoje, ser analisadas em termos de mudanças nos algoritmos de nossa própria composição Quântica.