“- Dom Genaro me fez saltar até o ressalto da rocha?
– Não interprete esse salto no sentido em que você entende esse salto – disse dom Juan Matus. – Mais uma vez, isso é apenas uma maneira de falar. Enquanto você se considerar que é um corpo sólido, não pode conceber o que estou falando.
Dom Juan espalhou cinzas no chão junto ao lampião, cobrindo uma área de uns sessenta centímetros quadrados e desenhou um diagrama com os dedos, um diagrama que tinha oito pontas ligadas entre si por linhas. Era uma figura geométrica.
Ele desenhara uma figura semelhante anos antes, quando tentara explicar-me não ser uma ilusão eu ter visto quatro vezes a mesma folha cair de uma árvore. ( *Nota: Está em Estranha Realidade, segunda obra de Castañeda)
O diagrama nas cinzas tinha dois epicentros; um ele chamou de Razão, ou outro de Vontade. A Razão estava interligada diretamente a um ponto que ele chamou do Falar. Por meio do Falar, a Razão estava indiretamente ligada a três outros pontos, Sentir, Sonhar (Ensonhar) e Ver.
Observei que o diagrama era diferente do que eu anotara anos antes.
– A forma exterior não tem importância – disse dom Juan.- Esses ponto representam um ser humano e podem ser traçados de qualquer jeito que se queira.
– Representam o corpo de um ser humano? – perguntei.
– Não chame o diagrama de ´corpo´. São oito pontos nas fibras do casulo de emanações de um ser luminoso. Um Vidente diz, conforme você pode ver no diagrama, que um ser humano é, antes de tudo, a Vontade, porque a vontade está diretamente ligada a três pontos, Sentir, Sonhar e Ver; só depois que o ser humano é Razão. Este, propriamente, é um centro menor do que a Vontade; a Razão só está ligada a Falar.
– Quais os outros dois pontos, dom Juan?
Ele olhou para mim e sorriu.
– Você hoje está bem mais forte do que da primeira vez que falamos sobre este diagrama – disse ele. – Mas ainda não está suficientemente forte para conhecer todos os oito pontos. Genaro um dia lhe mostrará os outros dois.
– Todo mundo tem esses oito pontos, ou só os feiticeiros?
– Podermos dizer que cada um de nós traz ao mundo oito pontos. Dois deles, Razão e Falar, são conhecidos de todos. Sentir é sempre vago, mas meio conhecido. Mas somente no mundo dos feiticeiros é que a gente vem a conhecer plenamente Sonhar, Ver e Vontade. E, por fim, na extremidade distante deste mundo encontramos os dois outros pontos. Os oito pontos formam a totalidade do nosso ser.
Dom Juan me mostrou no diagrama que em essência todos os pontos podiam ligar-se indiretamente uns com os outros.
Perguntei-lhe de novo acerca dos outros dois pontos misteriosos. Ele me mostrou que só estavam ligados à Vontade e que estavam muito afastados de Sentir, Sonhar e Ver, e muito mais afastados de Falar e Razão. Apontou com o dedo pra mostrar que estavam isolados do resto e entre si.
– Esses dois pontos nunca cederão a Falar nem à Razão. – disse ele. – Somente a Vontade pode manobrá-los, ou melhor um aspectos singular da Vontade denominado Intento. A Razão está tão distante deles que é inteiramente inútil tentar entendê-los. Essa é uma das coisas mais difíceis de compreender; afinal de contas, o forte da Razão é estar convencida que pode conceber tudo.
Perguntei-lhe se os oito pontos correspondem a áreas ou certos órgãos no corpo humano.
– Sim – respondeu ele secamente, e apagou o diagrama.
Tocou na minha cabeça e disse que aquele era o centro de Razão e Falar. A ponta do meu esterno era o centro de Sentir. A zona abaixo do umbigo era Vontade. Sonhar ou ensonhar, ficava do lado direito, contra as costelas. Ver era à esquerda. Disse que às vezes com alguns guerreiros, Ver e Sonhar eram do lado direito.
– Onde ficam os outros dois pontos? – perguntei.
Dom Juan deu-me uma resposta muito obscena e caiu na gargalhada.
– Você é tão furtivo – disse ele. – Pensa que sou um bode velho e dorminhoco, não é?
Expliquei-lhe que minhas perguntas tomavam seu próprio ímpeto.
– Não queira apressar-se – disse ele.
– Há de saber no momento oportuno quando estiver preparado pra assumir o poder do conhecimento, e aí ficará, por si, independente.
– Quer dizer que não o verei mais, dom Juan?
– Nunca mais – disse ele. – Genaro e eu seremos então o que sempre fomos, poeira de estrada.
Senti um choque na boca do estômago.
– O que está dizendo, dom Juan?
– Estou dizendo que somos todos seres insondáveis, luminosos e sem grades. Você, Genaro e eu estamos todos juntos por um propósito que não é devido à nossa decisão.
– A que propósito se refere?
– Aprender o caminho do guerreiro e alcançar a totalidade do ser. Você não consegue escapar disso, nem nós tampouco. Enquanto nossa realização estiver pendente, encontrará a mim ou a Genaro, mas depois que for conseguida, você poderá voar livremente e ninguém sabe para onde a força de sua vida o levará.
– Qual o motivo da razão não alcançar esta noção de totalidade abstrata?
– Hoje tenho que bater na tecla que Genaro apertou em você, o fato de sermos seres de emanações luminosas antes de tudo. Somos percebedores. Somos uma consciência; não somos objetos e não temos solidez como uma pedra. Somos sem fronteiras definidas. O mundo dos objetos e a solidez é uma descrição que foi gerada por nossa mente condicionada. Nós, ou antes, nossa razão, nos esquecemos que a descrição é apenas uma descrição e assim encerramos a totalidade de nós mesmos num círculo vicioso do qual raramente emergimos em nossa vida.
Dom Juan deu uma risada dizendo que eu estava emaranhado nas teias da razão quando pensava. Desenhou com atenção outro diagrama nas cinzas e cobriu-o com o chapéu antes que eu pudesse copiá-lo.
— Somos percebedores — prosseguiu. — O mundo que percebemos, porem, é uma ilusão. Foi criado por uma descrição que nos foi contada desde o momento em que nascemos. Nós, os seres luminosos, nascemos com dois círculos de poder, mas só usamos um para criar o mundo. Esse círculo, que é preso logo depois que nascemos, é a razão, e seu companheiro é falar. Entre si, esses círculos inventam e mantém o mundo. Assim, em essência, o mundo que sua razão quer sustentar é o mundo criado por uma descrição e suas regras dogmáticas e invioláveis, que a razão aprende a aceitar e defender. O segredo dos seres luminosos é que ele têm um outro círculo de poder que nunca é usado, a Vontade, e sua modalidade mais abstrata e impessoal, o Intento. O truque do feiticeiro é o mesmo truque do homem comum. Ambos têm uma descrição; um, o homem normal, a sustenta com sua razão e emoção, falando ou pensando nisso, já o outro, o feiticeiro, a sua sustenta com sua Vontade através dos círculos do Sonhar e do Ver. Ambas as descrições tem suas regras, e essas regras são perceptíveis, mas a vantagem do feiticeiro é que a vontade e mais absorvente do que a razão.
A sugestão que quero fazer aqui é que de hoje em diante você se deixe perceber se a descrição e mantida pela sua razão ou pela sua vontade. Acho que é o único meio de você usar seu mundo de todo dia como desafio e veículo, para acumular suficiente poder pessoal a fim de chegar à totalidade de seu ser.
(…)
– Você se surpreenderia ao ver como se pode agir na esfera da vontade quando se está encurralado – disse dom Juan enigmaticamente.
Levantou-se então e pegou um monte de lenha. Colocou uns galhos no fogão de barro. As chamas lançavam um brilho amarelado no chão. Depois, ele apagou o lampião e agachou-se defronte do chapéu, que cobria o desenho que fizera nas cinzas.
Mandou que eu ficasse sentado calmamente, que parasse o diálogo interno e mantivesse os olhos sobre o chapéu dele. Lutei um pouco e depois tive a sensação de flutuar, de cair de um penhasco. Era como se nada me sustentasse, como se eu não estivesse sentado, ou não tivesse corpo.
Dom Juan levantou o chapéu. Debaixo dele haviam espirais de cinzas. Eu olhei para as espirais sem pensar. Senti as espirais se movendo. Senti-as em minha barriga. As cinzas pareciam empilhar-se. Depois agitaram-se e se estufaram, e de repente dom Genaro estava sentado diante de mim.
À vista dele fui logo forçado a recorrer ao meu diálogo interno. Pensei ter adormecido. Comecei a respirar ofegante e tentei abrir os olhos, mas já estavam abertos.
Ouvi dom Juan me dizer que era pra eu levantar e me mover. Levantei-me de um salto e fui até a ramada. Dom Juan levou meu lampião. Eu não conseguia controlar minha respiração. Tentei acalmar-me como já fizera antes, correndo no mesmo lugar, virado para o oeste. Levantei então meus braços e continuei respirando. Dom Juan foi para meu lado e disse que aqueles movimentos só se faziam ao pôr-do-sol.
Dom Genaro gritou que era o pôr-do-sol pra mim, e os dois começara a rir. Dom Genaro correu até a beira do mato e depois voltou aos pulos para a ramada, como se estivesse preso a um elástico gigante que o fizesse voltar de repente. Repetiu o mesmo movimento três ou quatro vezes e depois veio para meu lado. Dom Juan estava me fitando fixamente, rindo como uma criança.
Eles trocaram olhares furtivos. Dom Juan disse a dom Genaro, em voz alta, que minha razão era perigosa, e que poderia me matar se não fosse acalmada.
– Pelo amor de Deus! – exclamou dom Genaro, numa voz de trovão. – Acalme a razão desse rapaz!
Eles pulavam e riam como duas crianças.
Dom Juan me fez sentar sob a luz do lampião e entregou-me meu bloco de notas.
– Hoje estamos mesmo implicando com você. – disse ele, num tom apaziguador. – Não tenha medo. Genaro estava escondido debaixo do meu chapéu.”
(Porta para o Infinito, Carlos Castañeda)
(Créditos pela digitação para Dinarte)