Entre o momento em que alcançamos pela primeira vez a lembrança da nossa totalidade
até o momento em que essa consciência se estabiliza,
um guerreiro que está perdendo a forma encontra uma série de desafios.
Vou usar esse texto pra falar sobre alguns desses desafios:
Confundir a totalidade de si com uma sensação
Um dos primeiros desafios que aparece é o de desidentificar a totalidade do ser de todas as sensações.
Quando se alcança a lembrança da totalidade de si a partir da forma humana, sem substâncias de poder,
essa momento é acompanhando de uma sensação inconfundível de intensa de pura compreensão, total lucidez, de libertação ou integração da forma na totalidade, de profunda paz, equanimidade.
E é quase inevitável criar uma confusão e acreditar que a totalidade de si são essas sensações,
e achar que quando elas estão ausentes então “eu voltei pra forma” ou “perdi o contato com a totalidade de mim”.
Embora uma sensação de felicidade decorra do estar consciente da nossa totalidade, a totalidade em si não é essa sensação. Nem nenhuma outra.
Essas sensações também são passageiras, acontecendo em algo que não é passageiro.
Ter isso cristalino pra si mesmo é a chave pra se lembrar da totalidade de si mesmo em meio às várias mudanças de sensações às quais o tonal está sujeito.
A presença de uma sensação densa ou de pensamentos confusos não é um indicativo de que a totalidade se perdeu.
Só quer dizer que a nossa atenção está focalizada nessas coisas. E que essa focalização pode levar a uma identificação e um esquecimento temporário.
Constatar que a totalidade nunca se perde, e que sem a totalidade nem sequer haveria experiência e conhecimento da experiência
e que é a própria totalidade quem acredita ou sonha ser a forma…
estabiliza essa consciência e dissolve os intentos que nos levam a acreditar que seja possível se perder da totalidade,
ou de que exista outra coisa que não seja ela.
Desejar reconhecimento por ter perdido a forma
A perda da forma parece ser inicialmente uma meta cultivada PELA forma.
E quando enxergamos isso como um tipo de “meta máxima” do caminho,
é também quase inevitável que após realmente recuperarmos a lembrança da totalidade de nós,
esse desejo cultivado pela forma se apresente como um desejo por receber os louros da vitória.
Ou seja, é uma estranha situação em que a forma quer receber os méritos…. por ter percebido que ela nunca existiu.
E é possível que enquanto nosso Ver não esteja totalmente claro,
a nossa identidade pessoal busque uma brecha não só pra sobreviver mas pra lucrar com isso.
Ser reconhecida como guerreirx sem forma, nagual, vidente.
E então nesses momentos podemos até falar sobre a totalidade, e as palavras podem estar todas certas na superfície,
mas o sentimento e o sabor transmitido pelas palavras não estão certos.
Porque elas partem naquele momento da nossa identificação imaginária com a forma, e não da totalidade consciente de si.
As concessões com as quais a ilusão da forma sobrevive nos fazem, ainda que tenhamos lembranças frequentes da nossa totalidade, ter todo tipo de atos que não são condizentes com essa consciência.
Alcançar a lembrança da totalidade de si é o florescimento do caminho, é algo pra ser celebrado.
É um tesouro que abre mostra que as portas da liberdade sempre estiveram abertas.
Que é gratuito mas que custa uma vida de sofrimento e todas as nossas ilusões.
Mas como é que vamos querer nos vangloriar disso quando vemos que tudo é a totalidade?
Que quem está esquecido também é a mesma totalidade consciente em nós?
Que ela não é realmente fruto do nosso esforço?
Que não é que realmente perdemos a forma, mas antes que vemos que nunca a tivemos?
O hábito de interagir a partir da forma
O hábito de responder a partir da forma é tão intensamente cultivado, que às vezes,
mesmo quando já nos lembramos de nós na ausência de companhia,
logo que entramos numa interação nosso sentimento se comprime novamente,
e entramos na posição de olhar a forma diante de nós como um “outro” e de sentir que nós mesmos somos uma pessoa separada do resto.
Isso pode de início levar a sentir a necessidade de transformar essas relações,
pra que de algum jeito as pessoas passem a enxergar a gente como uma “não-forma”.
O que só leva a mais confusão.
Esse esquecimento não é realmente algo que depende do que as pessoas dizem e fazem.
Depende apenas e simplesmente da nossa própria lucidez a respeito de nós mesmos
enquanto essas interações acontecem.
Se interagimos, na superfície, como faríamos habitualmente,
mas mantemos clara a consciência da totalidade,
isso faz com que os atos e palavras do nosso tonal carreguem uma qualidade diferente.
Mesmo que superficialmente pareçam ser parte da loucura, eles transmitem uma certa lucidez e sobriedade, ou amor,
e é o que os novos videntes chamam de loucura controlada.
Se estamos conscientes da nossa totalidade, por mais que estejamos numa interação onde alguém acredita firmemente na realidade da sua própria individualidade,
nós não podemos evitar ver e enxergar e interagir com a totalidade naquele ser, e não com a forma nele.
E então essas palavras e o nosso silêncio tocam a totalidade naquele ser.
Mesmo que o tonal não se dê conta disso.
Os desejos cultivados intensamente no tonal
Algo comum, é que os desejos que cultivamos intensamente no tonal,
quando são relembrados, e passam pela nossa percepção,
têm uma certa força de nos atrair temporariamente pra uma perspectiva onde nos esquecemos de nós mesmos.
O mais comum deles talvez seja o de querer uma parceira, um parceiro, um romance, um amor pra toda vida.
Ou de paternidade, maternidade. Ou ainda de reconhecimento profissional. E assim em diante.
Ser livre não significa ter que sacrificar a sua vontade e a liberdade de ter experiências.
Implica abrir mão dessa ideia de nós mesmos sobre a qual esses desejos estão apoiados.
Então é possível, se realmente quisermos, intentar esses intentos a partir de um outro lugar.
Não de necessidade, ânsia por felicidade, medo de falta, mas quase de indiferença, de uma predileção desprendida.
Alguns desejos tem um empuxo forte o suficiente pra levar ao esquecimento.
Por isso não tem realmente atalhos no caminho.
Tem e não tem. O atalho é ter energia livre e um intento suficientemente cristalino pela totalidade.
Então podemos nesse mesmo instante tomar posse da nossa totalidade.
Mas o preço de um intento cristalino é a sabedoria adquirida nas desilusões dentro do tonal.
Quando falo desilusões, falo da constatação que a felicidade no tonal é sempre temporária,
até a sabedoria necessária pra perceber que essa próxima promessa de felicidade duradoura também é uma armadilha
e que se o preço dela é o esquecimento, esse preço é alto demais.
Esses desejos, ou pelo menos aqueles que são tão ou mais intensos que o nosso intento pela totalidade,
inevitavelmente precisam ser limpos do tonal. Seja usando as técnicas do caminho do guerreiro
pra limpar a importância que eles receberam, como a recapitulação, abrir mão da importância pessoal, não-piedade, etc…
seja sofrendo e aprendendo…
seja vendo através deles e desfazendo os intentos, se já aprendemos a Ver,
ou até transformando esses intentos e trazendo eles pra perspectiva da totalidade.
Ou seja, ao invés de intentar eles a partir da forma humana, intentar e resignificar eles a partir dos olhos da nossa totalidade.