“Dom Juan continuou sua explicação; disse que, ao examinar a primeira atenção, os novos videntes descobriram que todos os seres orgânicos, exceto o homem, acalmam suas emanações prisioneiras agitadas, de modo que possam alinhar-se com as emanações externas que lhes correspondem. Os seres humanos não procedem assim; em lugar disso, sua primeira atenção faz um inventário das emanações da Águia no interior de seus casulos.
— O que é um inventário, Dom Juan?
— Os seres humanos notam as emanações que têm dentro de seus casulos — explicou. — Nenhuma outra criatura faz isso. No momento em que a pressão das emanações livres, fixa as emanações do interior, a primeira atenção começa a observar a si mesma. Nota tudo a respeito de si mesma, ou ao menos tenta, mesmo das maneiras mais aberrantes. Este é o processo que os videntes chamam de fazer um inventário.
“Não quero dizer que seres humanos escolheram fazer inventários, ou que podem recusar-se a fazê-los. Fazer um inventário é a ordem da Águia. O que está sujeito ã vontade, entretanto, é a maneira como a ordem é obedecida.”
Disse que, embora não lhe agradasse chamar as emanações de ordens, é isso o que elas são: ordens a que ninguém pode desobedecer. E, contudo, a maneira de fugir à obediência às ordens está em obedecer-lhes.
— No caso do inventário da primeira atenção, os videntes fazem-no porque não podem desobedecer. Mas depois de completá-lo, atiram-no fora. A Águia não nos ordena que veneremos nosso inventário; ela só ordena que o façamos.
— Como os videntes vêem que o homem faz um inventário?
— As emanações no interior do casulo do homem não são acalmadas com o propósito de serem combinadas cora as externas. Isto é evidente depois que se vi o que as outras criaturas fazem. Ao acalmar-se, algumas delas chegam realmente a fundir-se com as emanações livres, e movem-se com elas. Os videntes podem ver, por exemplo, a luz das emanações dos escaravelhos expandindo-se a um tamanho imenso. Mas os seres humanos acalmam suas emanações e então refletem sobre elas. As emanações focalizam-se em si mesmas.
Continuando, disse que os seres humanos levam ao extremo lógico o comando de fazer o inventário, e dispensam todo o restante. Uma vez que estão profundamente envolvidos no inventário, duas coisas podem acontecer. Podem ignorar os impulsos das emanações livres, ou usá-las de um modo muito especializado.
O resultado final de ignorar esses impulsos após fazer um inventário é um estado único conhecido como razão. O resultado de usar cada impulso de uma maneira especializada é conhecido como auto-absorção.
A razão humana aparece ao vidente como um brilho opaco incomumente homogêneo, que raramente reage, quando chega a fazê-lo, à pressão constante das emanações livres — um brilho que faz a concha ovóide ficar mais forte, porém mais quebradiça.
Dom Juan observou que a razão na espécie humana deveria ser abundante, mas que na realidade é muito rara. A maioria dos seres humanos volta-se para a auto-absorção. Assegurou que a consciência de todos os seres vivos tem um grau de auto-reflexão, para permitir que interajam. Mas nenhuma, exceto a primeira atenção do homem, possui tal grau de auto-absorção. Contrariamente aos homens de razão, que ignoram os impulsos das emanações livres, os indivíduos auto-absorvidos usam cada impulso e transformam-nos a todos em uma força para agitar as emanações aprisionadas no interior dos seus casulos.
Observando tudo isso, os videntes chegaram a uma conclusão prática. Viram que os homens de razão são destinados a viver mais tempo, porque, ao ignorar o impulso das emanações livres, aquietam a natural agitação do interior dos seus casulos. Os indivíduos auto-absorvidos, por outro lado, usando o Impulso das emanações livres para criar mais agitação, encurtam suas vidas.
— O que os videntes vêem quando olham para seres humanos autoabsorvidos?
— Vêem-nos como explosões intermitentes de luz branca, seguidas de longas pausas de opacidade.
Dom Juan parou de falar. Eu não tinha outras perguntas a fazer, ou talvez estivesse cansado demais para perguntar sobre qualquer coisa. Houve uma batida forte que me fez saltar. A porta da frente abriu-se e Genaro entrou, sem fôlego. Desabou sobre a esteira. Estava realmente coberto de suor.
— Eu estava explicando sobre a primeira atenção — disse-lhe Dom Juan.
— A primeira atenção trabalha apenas com o conhecido — falou Genaro. — Não vale dois níquéis furados com o desconhecido.
— Isso não é exatamente certo — retorquiu Dom Juan, —A primeira atenção trabalha muito bem com o desconhecido. Ela o bloqueia; ela nega-o tão ferozmente que, no final, o desconhecido não existe para a primeira atenção.
— Fazer um inventário torna-nos invulneráveis, é por isso que o inventário começou a existir.”
(O Fogo Interior, Carlos Castañeda)