“Eu disse a Don Juan que, por algum motivo estranho, tinha gostado muito deles.
– Não é assim tão estranho – retrucou ele. – Você deve ter sentido que o tonal deles é certo. É certo, mas não para a nossa época. Provavelmente sentiu que eles parecem crianças. E são. E isso é muito duro. Eu os compreendo melhor, e assim não pude deixar de sentir um pouco de tristeza. Os índios são como os cães, nada possuem. Mas isso é da natureza da sorte deles e eu não deveria ficar triste. Minha tristeza, claro, é uma forma de eu me entregar.
– De onde eles são, Don Juan?
– Das Sierras. Vieram aqui na esperança de fazer fortuna. Querem ser comerciantes. São irmãos. Eu lhes disse que também venho das Sierras e que também sou comerciante. Disse que você era meu sócio. O dinheiro que lhes demos foi uma prenda; um guerreiro deve dar dessas prendas o tempo todo. Sem dúvida eles precisam do dinheiro, mas a necessidade não deve ser uma consideração essencial para uma prenda. O que se procura é o sentimento. Eu, pessoalmente, fiquei comovido ao ver aqueles três. Os índios são os perdedores de nossa época. A decadência deles começou com os espanhóis e agora, sob o reino de seus descendentes, os índios perderam tudo. Não é exagero dizer que os índios perderam seu tonal.
– Isso é uma metáfora, Don Juan?
– Não. É uma verdade. O tonal é muito vulnerável. Não pode suportar maus-tratos. O homem branco, desde o dia em que pisou nesta terra, sistematicamente, vem destruindo não apenas o tonal índio de cada época, como ainda o tonal pessoal de cada índio. É fácil deduzir que, para a média dos índios pobres, o branco tem sido um verdadeiro inferno. No entanto, a ironia é que, para outro tipo de índio, tem sido uma felicidade.
– De quem está falando? Que tipo de índio é esse?
– O feiticeiro. Para o feiticeiro, a Conquista foi o desafio de toda uma vida. Eles foram os únicos que não foram destruídos por ela, mas se adaptaram e a utilizaram para a sua vantagem.
– Como foi possível, Don Juan? Eu tinha a impressão de que os espanhóis não deixaram pedra sobre pedra.
– Digamos que eles revolveram todas as pedras que estavam dentro dos limites de seu próprio tonal. Na vida dos índios, porém, havia coisas que eram incompreensíveis para o branco; essas coisas ele nem notou. Talvez fosse pura sorte dos feiticeiros, ou talvez tenha sido sua sabedoria que os tenha salvado. Depois que o tonal da época e o tonal pessoal de cada índio foi arrasado, os feiticeiros viram-se agarrados à única coisa qua permanecia inconteste, o nagual. Em outras palavras, o tonal refugiou-se no nagual. Isso não poderia ter acontecido não fossem as condições desesperadoras de um povo vencido. Os homens de conhecimento de hoje são o produto dessas condições e os conhecedores finais do nagual, já que foram deixados ali completamente em paz. Lá, o branco nunca se aventurou. Na verdade, ele nem tem ideia de que existe.
Nesse ponto senti-me obrigado a apresentar um argumento. Contestei sinceramente, dizendo que no pensamento europeu nós tínhamos conhecimento do que ele chamava de nagual. Apresentei o conceito do Ego Transcendental, ou o observador não observado presente em todos os nossos pensamentos, percepções e sentimentos. Expliquei a Dom Juan que o indivíduo podia perceber-se ou intuir-se, como ser, por meio do Ego Transcendental, pois era esta a única coisa capaz de julgamento, capaz de revelar a realidade dentro do reino de sua consciência.
Dom Juan não se alterou. Riu-se.
– Revelar a realidade – disse ele, me imitando. – Isso é o tonal.
Argumentei que o tonal pode ser chamado o Ego Empírico encontrado no nosso fluxo passageiro de consciência ou experiência, enquanto o Ego Transcendental se encontrava por trás desse fluxo.
– Observando, imagino – disse ele, zombando.
– Isso mesmo. Observando-se.
– Eu o ouço falar. Mas você não está dizendo nada. O nagual não é experiência, nem intuição, nem consciência. Esses termos e tudo o mais que você possa dizer são apenas itens na ilha do tonal. O nagual, ao contrário, é apenas o efeito. O tonal começa ao nascer e termina na morte, mas o nagual nunca termina. O nagual não tem limites. Já disse que o nagual está onde paira o poder; por isso foi apenas um meio de me referir ao assunto. Por causa de seu efeito, talvez o nagual possa ser mais bem compreendido em termos de poder. Por exemplo, quando você se sentiu dormente e sem poder falar hoje, na verdade eu o estava acalmando; isto é, o meu nagual estava agindo sobre você.
– Como é que isso é possível, Dom Juan?
– Você não vai acreditar, mas ninguém sabe como. O que eu sei é que eu queria toda sua atenção e aí o meu nagual começou a trabalhar em você. Sei disso porque posso ver o efeito, mas não sei como é que age.
Ele ficou calado por um momento. Eu queria continuar no mesmo assunto. Tentei fazer uma pergunta; ele não o permitiu.
– Pode-se dizer que o nagual explica a criatividade. – disse ele por fim, olhando-me de modo penetrante. – O nagual é a única parte de nós que consegue criar.
Ele ficou quieto, olhando pra mim. Senti que estava positivamente conduzindo-me para um setor sobre o qual eu queria que desse mais explicações. Ele dissera que o tonal não criava nada, apenas assistia e auxiliava. Perguntei como ele explicava o fato de nós construírmos magníficas estruturas e máquinas.
– Isso não é criatividade – disse ele. – É apenas moldagem. Podemos moldar qualquer coisa com nossas mãos, pessoalmente ou em conjunto com as mãos de outros tonais. Um grupo de tonais pode moldar qualquer coisa, magníficas estruturas, como diz você.
– Mas então o que é criatividade, Don Juan?
Ele ficou me olhando, os olhos apertados. Riu baixinho, levantou a mão direita sobre a cabeça e torceu o pulso numa sacudidela repentina, como se estivesse girando uma maçaneta de porta.
– A criatividade é isso – disse ele, e levou a mão com palma em concha até o nível de meus olhos.
Levei um tempo enorme para focalizar meus olhos na mão dele. Sentia que uma membrana transparente estava mantendo todo o meu corpo numa posição fixa e que eu tinha de rompê-la para poder focalizar minha vista na mão dele.
Esforcei-me até caírem gotas de suor em meus olhos. Por fim ouvi ou senti um estalo e meus olhos e minha cabeça estavam livres.
Na palma direita dele estava o roedor mais estranho que já vi. Parecia um esquilo de cauda peluda. A cauda, porém, parecia mais de um porco-espinho. Tinha espinhos duros.
– Toque nele! – ordenou Dom Juan, baixinho.
Obedeci mecanicamente e passei meu dedo por seu dorso macio. Dom Juan aproximou a mão dos meus olhos e aí reparei uma coisa que me provocou espasmos nervosos. O esquilo tinha óculos e dentes grandes.
– Parece um japonês – disse eu, e comecei a rir histericamente.
O roedor aí começou a crescer na palma de Dom Juan. E enquanto meus olhos ainda estavam cheios de lágrimas de riso, o roedor ficou tão enorme que desapareceu. Saiu do campo de minha visão. Isso aconteceu tão depressa que fui pilhado no meio de um espasmo de riso. Quando tornei a olhar, ou quando enxuguei os olhos e os localizei direito, eu estava olhando para Don Juan. Ele estava sentado no banco e eu de pé defronte dele, embora não me lembrasse de me ter levantado.
Por um momento, meu nervosismo foi incontrolável. Dom Juan levantou-se calmamente, obrigou-me a sentar, apoiou meu queixo entre o seu bíceps e o antebraço esquerdo, e deu-me um golpe bem no topo da cabeça com a mão direita. O efeito foi como um choque de uma corrente elétrica. Acalmou-me imediatamente.
(…)
– Um dos atos de um guerreiro é nunca deixar que coisa alguma o afete. Assim, um guerreiro pode estar vendo o próprio diabo, mas não permite que ninguém o saiba. O controle de um guerreiro tem de ser impecável.”

(Porta para o Infinito, Carlos Castañeda)

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