“Eu havia sido orientado à começar a recapitular os eventos de minha vida, mesmo que no começo tivesse dificuldades em lembrar das interações ou manter as memórias por um tempo propício para terminar a recapitulação.
A premissa era de que em algum momento surgiria o que os xamãs chamam de evento condutor.
O evento condutor seria uma memória que viria à mim de forma tão avassaladora e real, que a partir daí tudo na minha recapitulação iria mudar drasticamente, como se um feixe de luz passasse a iluminar todas as memórias a partir daí, dando uma nova luz a minha prática.
Isso seria um fato energético que iria acontecer uma hora ou outra, como aconteceu com todos de minha linhagem anteriormente, caso o guerreiro persistisse na prática do exercício a despeito das dificuldades iniciais.
Eu segui a recomendação, e foi exatamente o que aconteceu.
Depois de um tempo recapitulando, um dia eu estava na praia e ia recapitular uma situação pré-selecionada, quando uma memória irresistível me puxou: comecei a me lembrar dos meus tempos de escola, no primário.
Só que dessa vez, foi diferente.
Das outras vezes, por mais que eu me esforçasse para estar no local das situações e reviver tudo, não podia deixar de admitir que eram memórias, ainda que bem vivas. Agora, pela primeira vez nas minhas recapitulações, eu realmente estava na escola que eu estudei.
Eu percorria seus corredores, subia as escadas, entrava nas salas, e via tudo com uma clareza de detalhes impressionante.
Me emocionei na hora, apesar de tentar manter uma certa imparcialidade.
Fazia muito tempo que eu não me recordava daquilo daquela forma.
Os anos naquela escola pública não foram muito bons pra mim, pois eu havia saído de uma escola particular na terceira série e, por força das circunstâncias da vida, meus pais tiveram que me matricular naquela escola estadual em São Bernardo do Campo/SP.
Tudo era muito diferente, e eu demorei pra me adaptar aquele novo modo de vida, com garotos roubando lanches no intervalo, brigando na saída, tomando dinheiro dos meninos menores.
Me sentia constantemente ameaçado, e não queria falar nada em casa.
Minha consciência vagava pela escola, ainda impressionado com a clareza de detalhes que minha percepção tinha naquela recapitulação.
Eu fazia os movimentos de respiração mais pelo hábito mesmo, pq sentia que mesmo que parasse de girar a cabeça, eu não sairia da escola.
A medida que passava pela quadra, pelo salão onde cantávamos o hino nacional, muitas lembranças perdidas daquele tempo vinham a tona, muitas delas não muito agradáveis.
Eu tinha uma sensação ruim de que não gostava de mim naquele tempo, ou de que aquele garoto daquela época não era eu, não podia ser eu.
Como eu, um guerreiro, podia ter sido aquele menino assustado que várias vezes foi roubado ou apanhou na escola?
Ao mesmo tempo que sentia esse sensação de inadequação, de rejeição por mim mesmo, também “vi” claramente que na verdade eu senti isso a vida toda, mas mascarava esse sentimento de mim mesmo, talvez por uma vergonha inconsciente de ter sido uma garoto frágil em algum tempo de minha vida.
Senti como se eu tivesse me separado de mim mesmo.
Uma necessidade enorme de me integrar novamente tomou conta de mim, e aí aconteceu o inesperado:
Eu me vi indo comprar um pão com molho na cantina, coisa que eu quase nunca fazia, por medo dos garotos maloqueiros que ficavam lá na espreita, esperando alguma vítima no recreio.
Senti uma apreensão quando os garotos vieram em minha direção, ou na direção da versão mais nova de mim, que havia comprado o lanche.
Eles vieram e cercaram meu eu criança, enquanto minha consciência acompanhava tudo de forma dramática, querendo intervir.
Eu não queria passar por aquilo de novo, logo aquilo que eu fizera questão de esquecer.
Não teve jeito.
Eu revivi novamente aquela situação, agora de um outro prisma.
Dessa vez, entretanto, vendo aquele garotinho de 10 anos assustado e indefeso, um sentimento de amor e gratidão muito grande me envolveram.
Eu gostava daquele menino, foi através dele que eu havia me tornado o que era.
Ali, naquele ambiente hostil, eu havia forjado uma mentalidade de sobrevivência e luta.
Percebi claramente que muito do meu sentimento de autopiedade que me acompanhou em minha vida antes de me tornar um guerreiro, estava intimamente ligado com o que eu havia passado na infância naquela escola.
Revivendo aquela cena, senti um enorme carinho por mim mesmo quando criança.
“Vi” que aquele garotinho não tinha culpa, ele passou pelo que tinha de passar, de forma impecável, e eu não tinha o direito de virar as costa pra ele e rejeitá-lo.
Ele era, é e sempre vai ser parte de mim, a despeito de eu estar apagando minha história pessoal naquela época.
Naquela momento, naquela recapitulação, eu perdoei ele por nunca ter reagido, por sempre ter sido vítima, por nunca ter lutado, uma ideia que no meu momento atual de vida, era inadmissível e me causava repulsa.
E, mais importante, eu me perdoei por ter renegado por tanto tempo o que eu tinha sido.
Do fundo do meu vazio de guerreiro, eu abracei o pequeno Juan, lhe confortei e me integrei novamente a ele, para nunca mais abandoná-lo.
Uma lágrima de alegria rolou no meu rosto, como um peso saindo das minhas costas.
Eu nunca tinha tido uma experiência tão real e transformadora como aquela, nem com uso de psicoativos.
Fiquei com vontade de continuar lá na escola, as memórias continuavam vindo e diferente do começo da recapitulação, agora eu me sentia bem ali, queria ficar perto do Juanito, mas sabia que era hora de voltar.
Tranquei a recapitulação e estava de volta a praia.
A partir daí, depois do evento condutor, minha recapitulação mudou totalmente.
As cenas e as situações ganharam uma nova roupagem, muito mais reais e intensas, como se um dique dentro de mim tivesse se rompido.
Um novo processo de recapitular tomou forma em minha vida.
E o mais importante, eu me perdoei e caminhava agora sim, rumo a totalidade de mim mesmo.”
Juan Tuma