– Cada vez que nos olhamos em um espelho, disse don Juan, ou vemos nosso reflexo na água, pensamos que vemos a mesma pessoa que vimos da última vez que olhamos. Podemos notar algumas mudanças, como rugas, ou uma barba mais longa, ou uma expressão diferente. Mas sabemos que essas diferenças são superficiais. Eles não nos fazem outra pessoa. Aprendemos a nos reconhecer como seres que mudam, mas, para o nosso olho interior, somos iguais – Ele se inclinou em minha direção e trouxe seu rosto desconfortavelmente perto do meu – Mas não é nada mais do que uma miragem, ele sussurrou. É por isso que você nunca deve olhar muito de perto no espelho; você se fixará permanentemente como algo que não deseja ser.
Suspeitei que Clara tivesse contado a ela sobre meu pedido recorrente para instalar espelhos no banheiro de sua casa. Tive dificuldade em me ajustar para não ver meu reflexo, e continuei tentando obter vislumbres de mim mesma em qualquer superfície brilhante e reflexiva.
Ele reiterou que estamos mudando constantemente e nunca somos os mesmos de momento a momento. Cada novo pensamento, ação ou experiência nos torna diferentes, é apenas a memória de nós mesmos que nos garante que somos contínuos, estáveis e familiares.
– Se estamos sempre mudando, disse eu, como podemos nos reconhecer?
Ele disse que não há como nos reconhecermos, porque somos um mistério. Totalmente desconhecido para nós e para os outros.
– Esse é um dos preceitos da espreita, frisou. Aprendi com meu benfeitor, o nagual Julian, e passo a você. Somos um mistério indescritível.
– Mas eu sei quem eu sou, disse eu.
– Isso é porque você é uma tola, disse don Juan, rindo. É estúpido acreditar que só porque você tem um nome, um endereço, um emprego ou vai à escola, você já conhece a si mesma ou aos outros. Esses atributos não são o seu verdadeiro eu; são apenas formas de descrever quem você é, para que possa falar sobre você como uma pessoa social.
– Você está dizendo que eu não existo?
– Você existe, mas não da maneira que pensa, disse ele.
Don Juan enfatizou que a ideia de que o corpo é uma entidade constante e contínua é uma das suposições mais difíceis de quebrar.
– Por que isso acontece? – Eu perguntei dando uma mordida no pão que ele trouxe.
– Porque as pessoas se identificam com seus corpos, que percebem da forma que é aceita pelo mundo ao seu redor.
Argumentei que o corpo físico é verdadeiro e não uma aparência. Mas ele insistiu que manter esta posição decorre de percepção limitada e senso comum incorreto.
– Seu corpo é uma ideia, uma abstração, reiterou. Como você o considera depende da sua cultura e da modalidade da época em que você vive. Por exemplo, as pessoas no passado não tinham a mesma perspectiva sobre o corpo que temos. E o homem ocidental não tem a mesma visão dele que um feiticeiro tem.
– Não temos basicamente a mesma estrutura física? – Perguntei – Dois braços e pernas e um torso?
– Se tivéssemos a mesma constituição física, todos seríamos capazes de fazer as mesmas coisas, respondeu ele. Mas a maioria das pessoas não pode voar pelo ar, ou atravessar paredes, ou espalhar suas fibras luminosas para viajar grandes distâncias. Ou desaparecer bem na frente de seus olhos.
Devo ter dado a ele um olhar zombeteiro, porque ele acrescentou:
– Algumas pessoas não conseguem perceber o corpo etérico ou energético que lhes permitiria realizar essas façanhas extraordinárias. Portanto, ao contrário do feiticeiro que diariamente sintoniza e revigora seu corpo energético, seu duplo, a pessoa média não faz nada para melhorá-lo, mas faz tudo para realçar sua auto-importância, sua pessoa social.
– O que você quer dizer com auto-importância? – Perguntei.
Dom Juan pensou por um momento enquanto escolhia suas palavras.
– É colocar uma ênfase indevida na ideia que a pessoa tem de si mesma. Para que essa ideia se torne realidade, deve receber energia constante. É preciso sempre cuidar dela, sustentá-la, reforçá-la, mima-la, para mantê-la viva.
Quando lhe perguntei por que isso acontecia, Dom Juan respondeu que as pessoas perderam o contato com suas origens misteriosas, que representam o desconhecido para elas, e só ficaram com uma imitação insignificante, uma ideia quimérica que consideram real.
– Se as pessoas percebessem que são desconhecidas para si mesmas e para os outros, não se considerariam importantes nem se sustentariam com sentimentos especiais. Elas saberiam que já são especiais. Mas, tendo perdido de vista seu verdadeiro mistério, elas tentam se fazer de misteriosas e agem de maneira importante. Mas isso é um erro mortal.
– Por que isso é um erro?
– Porque nunca devemos tentar ser nada, respondeu ele. Nossa natureza misteriosa já nos torna tudo o que poderíamos ser …
(Taisha Abelar, Textos inéditos)
(Compartilhado por Carlos Renê)