“Quando chegamos à saliência rochosa, estava quase escuro. Don Juan sentou-se apressadamente, no mesmo lugar e na mesma posição em que se havia sentado da primeira vez. Estava à minha direita, tocando-me com o ombro. Imediatamente pareceu entrar em profundo estado de relaxamento, que pareceu se extender até me envolver a mim mesmo em uma imobilidade e silêncio totais. Não podia sequer ouvir sua respiração ou notar a minha. Fechei os olhos, e ele cutucou-me para me advertir que os mantivesse abertos.
Quando tudo havia escurecido, uma imensa fadiga fez com que meus olhos começassem a se irritar e a arder. Por fim relaxei a resistência e fui puxado para o sono mais profundo e mais negro que jamais tivera. No entanto não estava de todo adormecido. Podia sentir o negrume espesso a meu redor. Tinha uma sensação inteiramente física de vadear através da escuridão. Repentinamente ela se tornou avermelhada, depois laranja, e depois de uma brancura cegante, como uma luz de néon terrivelmente forte. Aos poucos focalizei minha visão até perceber que permanecia sentado com Don Juan — porém não mais na caverna. Estávamos num topo de montanha olhando para baixo, para magníficas planícies com montes a distância. Essa bela pradaria estava banhada num resplandor, em uns raios de luz, que emanavam da própria terra. Para onde olhasse, via paisagens familiares: rochas, morros, rios, florestas, canyons, todos realçados e transformados por sua vibração, o seu brilho interior. Esse brilho, que cintilava em todas as coisas, também emanava do meu próprio ser.
— Seu ponto de aglutinação se moveu — Don Juan pareceu dizer-me.
As palavras não tinham som; mas ainda assim eu entendia o que tinha acabado de me dizer. Minha reação racional foi tentar explicar a mim mesmo que, devido aos meus ouvidos estarem momentaneamente afetados pelo que ocorria, eu havia escutado dom Juan como se ele falasse de dentro de um tubo.
— Seus ouvidos estão perfeitamente bem. Estamos num reino diferente da percepção — Don Juan pareceu dizer-me outra vez.
Mas eu não conseguia responder. Por um lado, sentia a letargia de um sono profundo me impedindo de proferir uma palavra que fosse, e por outro, me sentia mais alerta, mais desperto que nunca.
“O que está acontecendo?”, pensei.
“A caverna fez seu ponto de aglutinação mover-se”, pensou Don Juan, e eu ouvi seus pensamentos como se fossem minhas próprias palavras, enunciadas para dentro de mim mesmo.
Senti uma ordem, um comando que não tinha nada a ver com meus pensamentos. Algo ordenou-me a olhar de novo para a maravilhosa pradaria.
Ao observar fixamente para a prodigiosa visão, filamentos de luz começaram a sair, a radiar de tudo, naquela pradaria. No início foi como uma explosão de um número infinito de fibras curtas, depois as fibras se tornaram longos feixes filamentosos de luminosidade reunidos em faixas de luz vibrante que iam até o infinito. De fato não havia modo de extrair o sentido algum do que estava vendo, ou de descrevê-lo, exceto como filamentos de luz vibratória. Os filamentos não estavam misturados ou entrelaçados. Entretanto radiavam e continuavam a radiar, por todas as partes e direções, e cada um estava separado do outro, e ao mesmo tempo todos estavam enfeixados de um inextricável.
“Você está vendo as emanações da Águia e a força que as agrupa e mantém separadas”, pensou Don Juan.
Assim que captei seu pensamento, os filamentos de luz pareceram consumir toda a minha energia. A fadiga sobrepujou-me. Apagou minha visão e atirou-me na escuridão.
Quando abri os olhos novamente, senti algo muito familiar ao meu redor. Embora eu não pudesse onde estava, acreditei estar de volta num estado de consciência normal. Don Juan encontrava-se adormecido a meu lado, seu ombro contra o meu.
Então percebi que a escuridão à nossa volta era tão intensa que eu não podia sequer ver minhas mãos. Deduzi que a névoa houvesse encoberto a saliência rochosa e invadido a gruta. Ou que talvez fossem as nuvens baixas que desciam a cada noite chuvosa das montanhas mais altas como uma avalanche silenciosa. E no entanto, apesar da total escuridão, de algum modo vi que Don Juan havia aberto os olhos logo depois que abri os meus, embora não olhasse para mim. Instantaneamente percebi que vê-lo não era uma conseqüência da luz em minha retina. Era, antes, uma sensação corporal.
Fiquei tão entretido em observar Don Juan sem meus olhos que não estava prestando atenção ao que ele me dizia. Por fim ele parou de falar e voltou o rosto para mim como se quisesse me olhar nos olhos.
Tossiu um par de vezes para limpar a garganta e começou a falar numa voz muito baixa. Contou que seu benfeitor costumava vir à caverna com bastante freqüência, tanto com ele quanto com seus outros discípulos, mas com mais freqüência sozinho. Nessa caverna seu benfeitor viu a mesma pradaria que havíamos acabado de ver, uma visão que lhe deu a idéia de descrever o espírito como o fluxo das coisas.
Don Juan repetiu que seu benfeitor não era um bom pensador. Se fosse, teria percebido num instante que o que havia visto e descrito como o fluxo das coisas era o intento, a força que permeia tudo. Don Juan acrescentou que se seu benfeitor chegou a entender a natureza de sua visão, não revelou. Ele próprio tinha a impressão de que seu benfeitor nunca o soube. Seu benfeitor acreditava que havia visto o fluxo das coisas, o que era absolutamente verdadeiro, mas não do modo que ele pensava.
Don Juan foi tão enfático a respeito disso, que desejei perguntar-lhe qual era a diferença, mas não consegui falar. Minha garganta parecia congelada. Ficamos ali sentados em completo silêncio e imobilidade durante horas. E no entanto não experimentei qualquer desconforto. Meus músculos não ficaram cansados, minhas pernas não adormeceram, minhas costas não doeram. Quando recomeçou a falar, nem sequer percebi a transição e de imediato abandonei-me ao som de sua voz. Era um som melódico e rítmico que emergia da escuridão total que me cercava.
Explicou que naquele exato momento eu não estava em meu estado normal de consciência nem em consciência intensificada. Eu estava suspenso num intervalo, suspenso na escuridão da não-percepção. Meu ponto de aglutinação havia-se afastado da posição onde ocorre a percepção do mundo cotidiano, mas não não havia alcançado o lugar que o faria iluminar um feixe novo de campos de energia. Propriamente falando, estava entre duas possibilidades perceptivas. Esse estado intermediário, esse intervalo da percepção havia sido alcançado através da influência da caverna, a qual ela própria era guiada pelo intento dos feiticeiros que a escavaram.
Don Juan pediu-me para prestar bastante atenção ao que iria dizer em seguida. Contou que há milhares de anos, por meio do Ver, os feiticeiros deram se conta de que a terra era senciente e que sua consciência podia afetar a consciência dos seres humanos. Tentaram encontrar uma maneira de usar a influência da terra sobre a consciência humana e descobriram que certas cavernas eram muito eficientes. Don Juan disse que a procura por cavernas se transformou num trabalho de tempo integral para aqueles feiticeiros e através de seus esforços foram capazes de descobrir uma variedade de uso para os diferentes tipos de cavernas que encontravam. Acrescentou que, de todo aquele trabalho, o único resultado que interessava aos bruxos modernos era esta caverna em particular e sua capacidade de mover o ponto de aglutinação até atingir o intervalo de percepção.
Enquanto Don Juan falava, tive a inquietante sensação de que algo estava clareando em minha mente. Algo estava afunilando minha consciência para um longo canal estreito. Todos os pensamentos sem importância e sensações supérfluas de minha consciência normal eram espremidos para fora. Don Juan estava perfeitamente consciente do que acontecia comigo. Ouvi sua risadinha suave de satisfação. Disse que agora poderiamos falar com mais facilidade e nossa conversação teria mais profundidade.
Lembrei-me naquele momento de uma grande quantidade de coisas que ele me explicara antes. Por exemplo, sabia que estava sonhando. Na verdade encontrava-me profundamente adormecido, embora estivesse totalmente consciente de mim mesmo através de minha segunda atenção — a contraparte de meu estado normal de atenção. Tinha certeza de estar adormecido por causa de uma sensação corporal e uma dedução racional baseada em afirmações que Don Juan havia feito no passado. Eu acabara de ver as emanações da Águia, e Don Juan afirmara que era impossível para os feiticeiros ter uma visão continuada das emanações da Águia, exceto através do sonhar; portanto eu devia estar profundamente adormecido e ensonhando.
Don Juan explicou que o universo é feito de campos de energia que desafiam a descrição ou a análise. Disse que pareciam filamentos de luz comum, exceto pelo fato da luz comum ser carente de vida se comparada às emanações da Águia, que exsudam consciência de ser. Eu nunca havia, até esta noite, sido capaz de vê-Ias de uma maneira continuada. Don Juan mantivera antes desse dia que meu conhecimento e controle do intento não eram adequados para suportar o impacto daquela visão; e de fato tinha razão, eram uma visão de luz que irradiava vida.
Explicara que a percepção normal ocorre quando o intento, que é energia pura, ilumina uma porção dos filamentos luminosos no interior de nosso casulo, e ao mesmo tempo acende uma extensão dos filamentos que se extendem até o infinito fora do nosso casulo. A percepção extraordinária, ou seja ver, ocorre quando, por força do intento, um grupo diferente de campos de energia é iluminado e entra em atividade. Disse que quando um número crucial de campos de energia é aceso no interior do casulo luminoso, o feiticeiro é capaz de ver os próprios campos de energia. Tinha me explicado tudo isso em termos do brilho do ponto de aglutinação. Apenas depois de ver esses filamentos de luz com vida, acreditei compreender as explicações de dom Juan acerca da percepção. Compreendi que o brilho não é outra coisa senão a força do intento, e que o ponto de encaixe deveria ser chamado de ponto do intento.
Em outra ocasião, Don Juan contou novamente o pensamento racional dos antigos feiticeiros. Contou-me que, através de seu Ver, eles perceberam que a consciência acontecia quando um grupo de campos de energia no interior de nosso casulo luminoso estavam alinhados com os mesmos campos de energia fora dele. E acreditaram ter descoberto o alinhamento como fonte da consciência.
Após um exame minucioso, entretanto, tornou-se evidente que o que eles haviam chamado alinhamento das emanações da Águia não explicava inteiramente o que estavam vendo. Haviam percebido que apenas uma porção muito pequena do número total de filamentos luminosos no interior do casulo estava energizado, enquanto o resto permanecia inalterado. Ver esses poucos filamentos energizados havia criado uma falsa descoberta. Os filamentos não precisavam estar alinhados para se iluminarem, pois os filamentos do interior do casulo eram os mesmos que os do exterior. O que precisavam era ser acesos. O casulo luminoso é simplesmente uma cápsula transparente que encerca uma porção minúscula de fibras luminosas de extensão infinita. Fosse o que fosse que os energizava, era definitivamente uma força independente. Sentiram que não podiam continuar a chamá-la consciência, como haviam feito, porque a consciência era o brilho dos campos de energia ao serem iluminados. Como não podiam chamar à força acendedora de alinhamento, resolveram chamá-la de vontade.
Don Juan contou que, ao tornar-se seu Ver ainda mais sofisticada e efetivo, os antigos feiticeiros perceberam que a vontade era a força que mantinha as emanações da Águia separadas e era responsável não apenas por nossa consciência de ser, mas também por tudo no universo. Viram que essa força tinha consciência total e que surgia dos próprios campos de energia que faziam o universo. Decidiram então que intento era um nome mais apropriado do que vontade. Ao longo do tempo, no entanto, o nome demonstrou-se inadequado, porque não descreve sua esmagadora importância nem a conexão viva que tem com tudo no universo. Don Juan havia afirmado que nossa grande falha coletiva é que vivemos nossas vidas negligenciando completamente essa conexão. O fervilhar de nossas vidas, nossos incessantes interesses, preocupações, esperanças, frustrações e medo têm precedência, e no dia-a-dia não percebemos que estamos ligados a tudo o mais.
Segundo Don Juan, a idéia cristã de termos sido expulsos do jardim do Éden era uma alegoria para o fato de havermos perdido nosso conhecimento silencioso, o conhecimento do intento. A feitiçaria, então, era uma volta ao princípio, um retorno ao paraíso.
Permanecemos sentados na caverna em silêncio total, talvez por horas, ou talvez fossem apenas alguns instantes. Subitamente Don Juan começou a falar, e o som inesperado de sua voz chocou-me. Não captei suas palavras. Limpei a garganta para pedir-lhe que as repetisse e esse ato levou-me completamente para fora de minha reflexão. Percebi que a escuridão ao meu redor não era mais impenetrável. Agora podia falar. Senti que estava de volta ao meu estado normal de consciência.
Numa voz calma, Don Juan disse-me que pela primeira vez em minha vida eu havia visto o espírito, a força que sustenta o universo. Enfatizou que espírito não é algo que alguém possa usar ou comandar ou mover de algum modo — não obstante, podia-se usá-lo, comandá-lo ou movê-lo como se desejasse. Essa contradição, explicou, é a essência da feitiçaria. A falha em compreendê-lo havia levado gerações de feiticeiros à dor e à pena inimagináveis. Os naguais dos dias modernos, num esforço para evitar pagar esse exorbitantepreço em dor, haviam desenvolvido um código de comportamento chamado o caminho do guerreiro, ou a ação impecável, o qual preparava os feiticeiros realçando sua sobriedade e prudência.
Don Juan explicou que em outros tempos, num remoto passado, os feiticeiros estiveram profundamente interessados no elo de conexão geral que o intento tem com tudo o mais. E focalizando sua segunda atenção naquele elo, adquiriram não apenas conhecimento direto mas também a habilidade de manipular esse conhecimento e realizar feitos impressionantes. Não adquiriram, entretanto, o bom juízo mental necessário para manejar todo aquele poder.
Assim, numa disposição judiciosa, os feiticeiros decidiram focalizar sua segunda atenção apenas no elo de conexão de criaturas que têm consciência de ser. Isso incluía toda a faixa dos seres orgânicos existentes assim como toda a faixa do que os feiticeiros chamam seres inorgânicos, ou aliados, que descrevem como entidades com consciência, mas sem vida, ao menos da forma como compreendemos a vida. Esta solução também não foi bem sucedida, porque uma vez mais não lhes trouxe nem sabedoria nem juízo.
Em sua redução seguinte, os feiticeiros focalizaram sua atenção exclusivamente no elo que conecta os seres humanos ao intento. O resultado foi muito semelhante aos anteriores.
Os feiticeiros sensatos buscaram, então, uma redução final. Cada feiticeiro se ocuparia com sua conexão individual. Mas isso também mostrou-se ineficaz.
Don Juan disse que embora houvesse diferenças notáveis entre essas quatro áreas de interesse, uma era tão corruptora quanto as demais. Assim, no final, os feiticeiros ocuparam-se exclusivamente com a capacidade que seu elo individual com o intento tinha de libertá-los para acender o fogo interior.
Ele afirmou que todos os feiticeiros dos dias atuais precisam lutar de modo feroz para obter sanidade mental. A luta de um nagual é especialmente dura porque ele tem mais força, um comando maior sobre os campos de energia que determinam a percepção e mais treino e familiaridade com as complexidades do conhecimento silencioso, que nada mais é que o contato direto com o intento.
Examinada dessa maneira, a feitiçaria torna-se uma tentativa de restabelecer nosso conhecimento do intento e recuperar seu uso sem sucumbir a ele. E os cernes abstratos das histórias de feitiçarias são tonalidades de realização; graus da nossa consciência do intento.
Compreendi a explanação de Don Juan com perfeita clareza. Porém, quanto mais compreendia e mais clara se tornavam suas afirmações, maior meu desconsolo e desalento. Em dado momento considerei seriamente acabar com minha vida ali mesmo. Senti que estava amaldiçoado. Quase em lágrimas, disse a Don Juan que não valia a pena continuar sua explicação, pois eu sabia que estava por perder minha clareza mental e, quando voltasse ao meu estado normal de consciência, não lembraria de ter visto ou ouvido qualquer coisa. Minha consciência mundana iria impor seu hábito de repetição de uma vida inteira, e a razoável previsibilidade de sua lógica. Para mim isso era uma maldição. Disse-lhe que sentia asco de meu destino.
Don Juan começou a rir. Entre gargalhadas, respondeu que mesmo em consciência intensificada eu era um babão que me encantava pela repetição e que recorrentemente insistia em aborrecê-lo, com meus ataques de importância pessoal, descrevendo minha sensação de desvalia. Disse que se eu tivesse de sucumbir, que fosse lutando, não me desculpando ou sentindo pena de mim mesmo e que não importava qual fosse nosso destino específico, contanto que o encarássemos com abandono total.
Suas palavras fizeram com que eu me sentisse estaticamente feliz. Repeti muitas vezes, as lágrimas correndo por minha face, que concordava com ele. Havia uma felicidade tão profunda em mim que suspeitei que meus nervos estavam escapando ao controle. Chamei por todas as minhas forças para deter isso e senti o efeito tranquilizador de meus freios mentais. Mas quando isso aconteceu, minha claridade mental começou a difundir-se. Lutei em silêncio — tentando ser ao mesmo tempo menos controlado e menos nervoso. Don Juan não emitiu qualquer palavra e me deixou totalmente em paz.
Quando restabeleci meu equilíbrio, estava quase amanhecendo. Don Juan levantou-se, estendeu os braços acima da cabeça e tensionou os músculos, fazendo suas juntas estalarem. Ajudou-me a levantar e comentou que eu havia passado uma noite extremamente iluminante: havia experimentado o que era o espírito e havia sido capaz de convocar forças ocultas para realizar algo, o que na superfície equivalia a acalmar meu nervosismo, mas ao nível mais profundo havia de fato sido um movimento volitivo muito bem-sucedido de meu ponto de aglutinação.
Fez sinal então que era tempo de começarmos nosso caminho de volta.”
(O Poder do Silêncio, Carlos Castañeda)